O rol da ANS à luz das recentes decisões do STJ e da Lei 14.454/2022
A Constituição de 1988 permitiu à iniciativa privada a livre assistência à saúde, de forma suplementar ao sistema público (artigo 199) [1], prestada por operadoras de planos de saúde, atualmente regidas pela Lei 9.656/98, e fiscalizadas e reguladas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), instituída dois anos depois, pela Lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000.
Como toda agência reguladora, a ANS é uma autarquia especial, pessoa jurídica de direito público. Tem autonomia perante à administração pública direta e detém poderes normativos, fiscalizatórios e sancionatórios.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar é, ademais, vinculada ao Ministério da Saúde, e suas competências estão definidas no artigo 4º da Lei 9.961/00, valendo destacar a atribuição de elaborar o rol de procedimentos, previsto no inciso III, que deve ser interpretado em conjunto com os artigos 10 (que institui o plano de referência) e 12 (que estipula as coberturas obrigatórias a serem proporcionadas pelo plano de referência), estes da Lei 9.656/98.
Dentre os parágrafos do artigo 10, atentemo-nos ao 4º, 10º e 13º.
O § 4º confere à ANS o poder de limitar a amplitude das coberturas dos planos privados [2]. Investida no poder que lhe conferiu a prenotada norma, a Agência Nacional de Saúde Suplementar edita periodicamente, desde 2004, o rol de procedimentos (por atribuição do artigo 4º, III, da Lei 9.961/00).
O rol é elaborado por um grupo técnico, composto por representantes de entidades de defesa do consumidor, de operadoras de planos de saúde, de profissionais de saúde que atuam nos planos de saúde e de técnicos da própria da ANS, que apresenta uma proposta de atualização de novos procedimentos que devem ser cobertos, de acordo com os avanços da medicina, submetida a consulta pública e, somente depois das manifestações da sociedade, adquire a condição de norma jurídica. [3]
O “rol da ANS” ganhou maior visibilidade após os julgamentos do Recurso Especial 1.733.013/PR e dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1886929/SP e 1889704/SP e foi figura central na recente alteração sofrida pela Lei dos Planos de Saúde, que viu modificados diversos dispositivos, todos implementados pela Lei 14.454, de 2022, elaborada a pretexto de responder ao Judiciário, que havia decidido que o rol é taxativo.
Falamos, aqui, do julgamento do REsp 1.733.013/PR, que teve muita repercussão e sofreu críticas de diversos setores da sociedade, reduzindo a discussão a questões morais e retóricas, e acusando o Superior Tribunal de Justiça da prática de “ativismo judicial”; em defesa, o ministro Villas Boas Cueva sinalizou que a Corte Superior adota estritamente o princípio da deferência, exaltando a capacidade técnica da ANS. [4]
Embora não se trate de uma verdade incontestável (a terceira turma tem um histórico recente de prestígio às indicações médicas em detrimento das orientações da agência reguladora), a manifestação do ministro fomenta discussões sobre a aplicação indiscriminada do princípio da deferência. Seus críticos argumentam que a autocontenção judicial pode, em algumas situações, privilegiar práticas regulatórias contrárias ao escopo do bem tutelado, o direito à saúde.
O princípio da deferência surgiu para prestigiar a atividade regulatória em setores cuja prestação de serviço público foi concedida à iniciativa privada, como telecomunicações, energia elétrica e gás, por exemplo.[5] A atividade se dá pelas agências reguladoras, entidades com um grau considerável de independência do governo central, providas de autonomia reforçada e compostas por especialistas no assunto. Essas agências foram dotadas de poder decisório significativo, em tese, distante das influências políticas, e munidas de recursos financeiros e humanos substanciais.
O fenômeno das privatizações remonta ao final da década de 1990 no Brasil e o implemento das agências reguladoras trouxe novos desafios para a teoria do direito administrativo, suscitando dúvidas sobre o tipo de controle a ser exercido sobre essas entidades e se deveria ser diferente daquele aplicado às autoridades administrativas tradicionais.
Pois segundo a “teoria da deferência”, as decisões das agências reguladoras devem ser protegidas pela autocontenção judicial, justamente pela complexidade técnica das questões envolvidas, justificando uma deferência do Judiciário.
Sob essa perspectiva, questões técnicas complexas deveriam ser prioritariamente resolvidas pelas agências reguladoras, cabendo ao Judiciário apenas uma análise residual.
Em tese, a aplicação do princípio da deferência não conflita com outros princípios legais, muito pelo contrário, ela está alinhada com o princípio da separação de poderes, preservando as decisões técnicas das agências.
No entanto, se é necessário frear o ativismo judicial, igualmente, não se pode admitir o abuso de seu antídoto, a autocontenção, que se dá pela aplicação do princípio da deferência.
Na saúde suplementar, regulada pela ANS, a questão é ainda mais delicada, seja porque a judicialização atinge níveis estratosféricos, seja pela complexidade das questões médicas e a necessidade de preservação da sustentabilidade do sistema de saúde como um todo.
As recentes decisões do STJ, ao estabelecerem critérios técnicos e exigirem a comprovação de evidências científicas como parâmetros para a concessão de tratamentos fora do rol da ANS, buscam justamente equilibrar a necessidade de proteção ao direito à saúde do consumidor com a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar.
Entretanto, é crucial que tais critérios sejam aplicados de forma rigorosa e baseados em sólidas evidências científicas a fim de evitar decisões judiciais que, por mais bem-intencionadas que sejam, possam comprometer a qualidade e a eficácia do tratamento médico, bem como a viabilidade econômica do sistema.
Pois bem, quando se disse que a consagração do princípio da deferência em matéria de saúde suplementar pelo STJ não era uma verdade absoluta, tinha-se em consideração que a Corte Superior decidia no sentido de que, em havendo previsão de cobertura para determinada doença, o tratamento deveria ser coberto, estivesse ou não contemplado no rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS.
Em 2019, porém, a 4ª Turma quebrou o paradigma ao adotar o entendimento de que o rol da ANS é taxativo pela primeira vez no julgamento do RESP 1.733.013/PR, enquanto a 3ª Turma seguia adotando o entendimento tradicional da Corte.
E eis que os entendimentos se encontraram no julgamento de dois embargos de divergência, em que, curiosamente, se decidiu pela cobertura dos tratamentos pretendidos.
Os EREsps 1886929/SP e 1889704/SP, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, começaram a ser julgados em 16 de setembro de 2021, com substancioso voto do relator, que, não ignorando a delicadeza do tema, que demanda equacionar o direito à saúde e o equilíbrio financeiro dos contratos, enfrentou a questão sem argumentos morais, trazendo premissas para ratificar o entendimento esposado no julgamento do REsp 1.73313/PR, e arrematando que o Rol é taxativo, ainda que com exceções que, ao cabo, confirmariam a regra.
Pontuou o relator que é preciso preservar a segurança das relações jurídicas, garantindo a equivalência das prestações e contraprestações, cabendo ao Judiciário esse fundamental papel, que só pode ser exercido sem sentimentalismos e ideias preconcebidas. Prosseguindo, ressaltou que decisões à margem da lei escapam de previsões pretéritas e, ao final, trazem problemas, não às operadoras, mas à sociedade.
E eis que a solução veio das mãos do ministro Villas Bôas Cueva, que seguiu o relator, mas permitiu excepcionar a taxatividade do rol mediante a adoção de critérios técnicos no espírito das recomendações do Conselho Nacional de Justiça [6].
Para Villas Bôas Cueva, portanto, a taxatividade do rol de procedimentos da ANS somente poderia ser esgarçada se não houvesse substituto terapêutico que atendesse às necessidades do paciente e desde que a terapia estivesse respaldada por estudos relevantes, nacionais e estrangeiros, referendada pelo Nat-Jus e Conitec, e não tenha sido indeferida pela ANS.
Nascia então a expressão “taxatividade mitigada” para o rol de procedimentos da ANS, que, no entanto, desafiou resposta do legislador, que pretendeu por fim à taxatividade do rol.
A iniciativa legislativa redundou na Lei nº 14.454, de 21 de setembro de 2022, que modificou diversos dispositivos da Lei 9.656/98; ironicamente, porém, a ‘exemplificabilidade” do rol foi limitada justamente por critérios estipulados pelo Superior Tribunal de Justiça nos julgamentos mencionados.
Das inovações, importa mencionar os §§ 10º e 13º, que estabelecem critérios técnicos para a incorporação de novas tecnologias ao Rol [7] e para a cobertura de procedimentos que nele não estiverem incluídos [8].
Observa-se, portanto, uma preocupação com o respeito ao contrato e os critérios técnicos para definir as coberturas (vide, por exemplo, os incisos I e II, do § 13, da Lei 9.656/98, inovações surgidas com o espírito de eliminar a taxatividade do rol) e a impressão é de avanço.
No entanto, é necessário obedecer aos critérios técnicos sob pena de, a persistirem decisões no sentido das súmulas 90 e seguintes do TJ-SP [9] (como aquela em que se dizia que qualquer negativa seria indevida se contrariasse prescrição médica [10], ou aquela que impedia a negativa de tratamento experimental ou não previsto no rol da ANS, pelo simples existir de prescrição médica [11]), por exemplo, permanecer aberta a porta para o abuso por parte dos beneficiários dos planos de saúde, o que ocorre de há muito, no mais das vezes com participações importantes de profissionais da medicina e hospitais [12].