O novo modelo de assessoramento jurídico para a advocacia pública
Inovar é o verbo do momento. Mesmo sem saber ao certo do que se trata, a inovação não sai da boca dos empresários dedicados e dos gestores públicos zelosos, todos bastante preocupados em não ficar para trás diante dos impactos que a tecnologia pode causar ao seu dia a dia. Se Schumpeter mostrou que a inovação é uma estratégia essencial à sobrevivência da firma no setor privado, os últimos anos têm mostrado que inovar se tornou imperativo também para o setor público. Cada vez mais o Estado incorpora produtos, serviços e processos inovadores à prestação de serviços públicos, e a pandemia deixou claro como os investimentos em ciência e tecnologia são essenciais em qualquer contexto.
Muito embora reconheça o protagonismo das empresas, a literatura é pródiga em destacar a importância do papel do Estado para que a inovação aconteça, contribuindo para criar as condições sistêmicas e institucionais para o advento do progresso científico e tecnológico. Esse cenário coloca um desafio adicional à advocacia pública, a quem cabe o exercício das atividades de consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo. Afinal, a orientação jurídica em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) também exige lidar com novas ferramentas e, por isso, o objetivo deste texto é discutir a experiência da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP) na estruturação de um modelo diferenciado de atuação consultiva para essa área.
A Lei de Inovação (Lei nº 10.973/2004) ocupa o centro de um marco legal transversal e multidisciplinar que, até pouco tempo atrás, era muito pouco explorado nas faculdades de Direito. Na época, a relativa escassez de estudos jurídicos sobre o tema contribuía para que as várias possibilidades interpretativas, fruto da vagueza e da amplitude do próprio texto legal, provocassem muitas incertezas na sua aplicação. Esse cenário causava grande indefinição ao controle, que era exercido à moda de outros instrumentos de Direito Administrativo e sob a influência de outras legislações, especialmente da Lei nº 8.666/1993.
O Projeto de Lei nº 2.177/2011, de autoria do deputado Bruno Araújo (PSDB-PE), buscou criar um “Código de Ciência, Tecnologia e Inovação”, para reunir em um único diploma as principais normas sobre o tema no Brasil. Maria Paula Dallari Bucci e Diogo Coutinho ressaltam o caráter simbólico da figura do código, visto como “(…) resposta da comunidade científica a toda a área de controle (especialmente o Tribunal de Contas da União, a Advocacia Geral da União e a Controladoria Geral da União, englobados na expressão jocosa ‘Sistema U’)”.
A existência de um código preservaria os institutos públicos de pesquisa do controle excessivo, pois “(…) a comunidadepoderia dizer: ‘agora temos a nossa lei!’, ‘não nos sujeitamos mais à sua Lei de Licitações‘” [1]. Entretanto, a proposta deu lugar a uma estratégia de revisão pontual da legislação que resultou na Emenda Constitucional nº 85/2015 e na Lei nº 13.243/2016, responsável pela alteração da Lei de Inovação e diversas outras leis relacionadas ao ecossistema de CT&I.
Todavia, mesmo com a nova redação, o emprego dos instrumentos previstos na Lei de Inovação permaneceu abaixo do esperado. Vale citar o levantamento realizado por André Rauen, do Ipea, que revela de forma eloquente o uso quase inexpressivo da encomenda tecnológica entre 2010 e 2022. Ainda faltam dados estruturados sobre a aplicação do Marco legal de CT&I no Brasil, bem como sobre a frequência com que, efetivamente, tais acordos e contratos são julgados irregulares por órgãos de controle externo. Contudo, as evidências disponíveis até aqui convergem para o argumento de que o uso escasso desses instrumentos se deve, em grande parte, à indefinição sobre como os processos serão posteriormente analisados pelos órgãos de controle.
A advocacia pública tem um papel fundamental nesse contexto. Por isso, e na linha de outras iniciativas empreendidas por órgãos na esfera federal, como a AGU, a PGE-SP estruturou um modelo de assessoramento diferenciado para a área de CT&I, apostando na maior aproximação entre a advocacia pública e as instituições públicas de pesquisa, de forma a reduzir a insegurança jurídica.
O Toolkit do Marco Legal de CT&I, lançado no último dia 20 de setembro no Seminário de Compras Públicas organizado pelo Tribunal de Contas da União, em Brasília, é a peça central dessa estratégia. Elaborado pela PGE-SP com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do BrazilLab, o toolkit busca simplificar a aplicação da Lei de Inovação pelos gestores públicos. Para tanto, apresenta modelos para dez instrumentos jurídicos – Encomenda Tecnológica, Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI), Acordo de Parceria e para Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), Convênio para PD&I, contratos de transferência de tecnologia e licenciamento de propriedade intelectual, contrato de prestação de serviços técnicos especializados, concursos de inovação e chamamento público para instalação de ambientes promotores de inovação —, além de uma cartilha de propriedade intelectual e uma lista de verificação que sistematiza os requisitos previstos na legislação federal e estadual de CT&I
O toolkit foi publicado originalmente em março de 2021, a partir do diagnóstico de grave insegurança jurídica no uso da legislação de inovação. Para entender quais modelos seriam prioritários, a PGE-SP realizou, ao longo de um ano, o assessoramento jurídico personalizado das instituições públicas de pesquisa do estado de São Paulo. Nos últimos dois anos, mudanças legislativas importantes – especialmente a Nova Lei de Licitações e o Marco Legal de Startups – tornaram necessário atualizar e expandir o toolkit, que foi dobrado de seis documentos, em 2021, para 12, em 2023.
Baseados em exemplos reais e casos concretos, os modelos do toolkit foram elaborados de maneira colaborativa e validados por diversas instituições, públicas e privadas, incorporando sempre que possível recomendações extraídas das melhores práticas internacionais, para estimular a cooperação público-privada para a inovação no cenário brasileiro. O material foi revisado por mais de 50 especialistas e validado por meio de uma ampla consulta pública, com cerca de 140 contribuições. Além disso, os documentos incorporam recomendações e boas práticas internacionais, como as veiculadas pela alemã Koinno, a agência holandesa PIANOo e o toolkit desenvolvido pela Eafip (European Assistance for Innovation Procurement) na União Europeia.
O percurso percorrido pela PGE-SP também inclui iniciativas para o aumento de capacidades institucionais em CT&I, como a criação de um Núcleo de Estudos e Pesquisas em Propriedade Intelectual e Inovação em 2019, o qual deu origem a um Curso de Especialização em Direito Digital e Inovação, oferecido em 2022 na Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo – um dos primeiros do gênero em escolas de governo. Um ponto fundamental desse novo modelo de assessoramento jurídico é a oferta de novas ferramentas de trabalho aos gestores públicos, já acostumados a receber da jurisprudência orientações do que não fazer, mas que têm diante de si poucos relatos de bons exemplos a seguir.
O Toolkit do Marco Legal de CT&I, portanto, não é uma linha de chegada, mas um novo ponto de partida para ressignificar o papel que cabe à advocacia pública na orientação jurídica da área de CT&I.