Razoabilidade, proporcionalidade, presunção de inocência: a investigação social em concurso, na visão do STJ
Em alguns concursos públicos – especialmente nos órgãos da área de segurança –, é comum a realização da etapa de investigação social, ou sindicância de vida pregressa, com o objetivo de avaliar se a conduta pessoal do candidato é compatível com o cargo que pretende ocupar.
Buscam-se, entre outras, informações sobre condenações criminais e uso de drogas. É imprescindível que os requisitos exigidos para a comprovação da idoneidade do candidato estejam perfeitamente discriminados no edital do certame, respeitando a natureza e a complexidade do cargo, conforme entendimento da administração pública.Ao julgar casos sobre esse tema, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), respeitando a discricionariedade administrativa, avalia se a decisão que restringiu o ingresso do candidato na etapa de investigação social observou os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e se os aspectos vinculados do ato administrativo estão em plena consonância com o ordenamento jurídico brasileiro.
Na sequência, alguns entendimentos sobre o assunto.
Omissão de informações autoriza eliminação do concurso
Ao julgar o AgInt no RMS 60.984, a Primeira Turma reafirmou a jurisprudência do STJ no sentido de que a omissão em prestar informações exigidas pelo edital, na fase de investigação social ou de sindicância da vida pregressa, justifica a eliminação do candidato. A relatoria foi do ministro Benedito Gonçalves.
No caso, um candidato ao cargo de delegado da Polícia Civil teve sua inscrição cancelada na fase de investigação social do concurso, por ter omitido, no questionário de informações pessoais, que havia sido preso em flagrante e encaminhado ao Centro de Correição da Polícia Militar, além de já ter sofrido as penalidades de repreensão e suspensão de 30 dias em virtude de processo administrativo disciplinar.
Em mandado de segurança, o concorrente ao cargo alegou que, posteriormente à sua exclusão do certame, foi inocentado na ação penal que tramitou contra ele. Invocou a aplicação de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) segundo o qual “viola o princípio da presunção constitucional do estado de inocência a exclusão de certame público de candidato que, na fase de investigação social e criminal, responda a inquérito policial ou a ação penal sem trânsito em julgado da sentença condenatória”.
Investigação social verifica adequação ao cargo
O ministro Benedito Gonçalves, rejeitando as alegações do candidato, destacou que a sua eliminação se deveu ao fato de ter omitido informações relevantes para a comissão avaliadora daquela etapa do concurso, em desconformidade com previsão contida no edital, não subsistindo, dessa forma, direito líquido e certo à convocação e nomeação.
O relator acrescentou que, embora o concorrente tenha complementado as informações do questionário em momento posterior, não o fez de forma integral, deixando de tratar de fatos desabonadores, os quais poderiam levar à conclusão de que ele não satisfazia as exigências para o cargo de delegado.
“A investigação social para admissão de candidato a cargos sensíveis, como o de delegado policial, não se restringe à aferição de existência ou não de condenações penais transitadas em julgado, abrangendo, também, a conduta moral e social do candidato, a fim de verificar a sua adequação ao cargo almejado, que requer retidão e probidade”, afirmou o magistrado.
Só trânsito em julgado afasta presunção de inocência
Recentemente, no julgamento do RMS 47.528, a Segunda Turma, seguindo a orientação do STF, deu provimento ao recurso de um candidato para reverter a sua eliminação de concurso para o cargo de policial civil de Mato Grosso do Sul, decorrente da existência de oito inquéritos e uma ação penal em andamento.
O colegiado entendeu que apenas as condenações penais com trânsito em julgado são capazes de constituir impedimento para que um cidadão ingresse, mediante concurso, nos quadros funcionais do estado.
A comissão examinadora considerou que o candidato havia praticado atos tipificados como ilícitos penais, com repercussão social negativa, e que isso comprometeria a segurança e a confiabilidade da instituição policial.
No voto que prevaleceu no julgamento, o ministro Mauro Campbell Marques ponderou que não se admite que “meros boletins de ocorrência, inquéritos policiais, termos circunstanciados de ocorrência ou ações penais em curso, sem condenação passada em julgado, possam ser utilizados como fatores impeditivos” do acesso ao cargo público, “tendo em vista o relevo dado ao princípio constitucional da presunção de inocência”.
Além disso, o magistrado lembrou que, no caso, seria indispensável para a configuração de antecedentes desabonadores a presença dos requisitos dispostos no RE 560.900, julgado pelo STF no regime da repercussão geral.
Cadastro de inadimplentes não impede candidato
No julgamento do RMS 30.734, a Quinta Turma (que hoje é competente apenas para processos criminais) reformou decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) que manteve a exclusão de um candidato ao cargo de técnico penitenciário, reprovado na fase de sindicância de vida pregressa por causa do indiciamento em inquéritos policiais e do registro de anotações negativas em cadastro de proteção ao crédito.
Ao negar o mandado de segurança impetrado pelo candidato, o tribunal local levou em consideração a Lei Distrital 3.669/2005, que criou a carreira de atividades penitenciárias, cujo artigo 4º, parágrafo único, IV, exige a “comprovação de idoneidade e conduta ilibada na vida pública e na vida privada”.
Segundo a ministra Laurita Vaz, os inquéritos que embasaram a decisão do TJDFT deram origem a duas ações penais, que ainda estavam em andamento. Mesmo assim, por não terem gerado condenação definitiva, não poderiam impedir o candidato.
Em seu voto, a relatora destacou que fere o princípio da presunção de inocência e contraria a jurisprudência do STJ e do STF a reprovação de candidato, ainda na fase de investigação social, por ter sido verificada a existência de inquérito policial ou de ação penal não transitada em julgado.
Quanto ao cadastro de inadimplentes, a magistrada reconheceu que já houve decisão em sentido contrário no STJ, mas votou para que as anotações não pudessem interferir na avaliação do candidato. Para ela, “se nem as ações penais em curso podem alicerçar o ato de eliminação em concurso público na fase de investigação social, mostra-se desprovido de razoabilidade e proporcionalidade permitir-se que essa medida possa ser tomada com base no registro do nome do candidato em cadastro de serviço de proteção ao crédito”.
Transação penal não significa maus antecedentes
A Quinta Turma, acompanhando o relator, ministro Felix Fischer, no RMS 28.851, entendeu que a transação penal homologada por fatos imputados ao candidato a concurso não é, por si só, capaz de gerar sua exclusão na fase de investigação social.
No caso analisado pelo órgão julgador, um aspirante ao cargo de agente penitenciário afirmou que, apesar de ter obtido êxito em todas as fases da disputa, foi reprovado na investigação social e criminal em virtude de transação penal homologada anteriormente, relativa a suposto cometimento de crime de baixo potencial ofensivo.
Ao proferir seu voto, o relator destacou que, entre os diversos efeitos da transação penal em benefício do acusado, como reconhecido pela doutrina, está a não imputação de reincidência nem de registro de maus antecedentes.
“A transação penal a que alude o artigo 76 da Lei 9.099/1995 não importa em condenação do autor do fato”, declarou o magistrado, para quem “revela-se ilegal o ato administrativo que tem o recorrente como não recomendado em virtude tão somente de haver celebrado transação penal“.
Apesar disso, Fischer lembrou que há independência entre as instâncias criminal e administrativa, de modo que a transação penal obtida pelo acusado não poderia ter o efeito automático de impedir a apuração do mesmo fato na esfera administrativa, nem a aplicação das penalidades correspondentes.
Falta de documentação obrigatória não é tolerada
No julgamento do AgInt no RMS 63.700, a Primeira Turma manteve decisão monocrática do ministro Sérgio Kukina que negou provimento a recurso de candidato que deixou de entregar documentação obrigatória na fase de investigação social, implicando sua contraindicação nesta fase.
O candidato alegou que, após questionar sua desclassificação, obteve resposta que o induziu em erro e o impediu de esclarecer que os documentos em questão já tinham sido entregues.
Em seu voto, concordando com a fundamentação do tribunal de origem, Sérgio Kukina entendeu não haver ilegalidade ou abuso de poder na conduta da banca examinadora, pois ficou comprovado que o candidato deixou de apresentar a certidão dos cartórios de execução cível das cidades onde residia e onde havia residido nos últimos cinco anos, como exigido pelo edital.
“Ilegalidade haveria se, em manifesta violação da norma de regência, fosse o impetrante declarado aprovado, ou a ele se oferecesse a vedada dilação temporal para a apresentação dos documentos pessoais destinados a subsidiar a avaliação de idoneidade e conduta ilibada”, afirmou o magistrado.
O ministro considerou que não fazia sentido o argumento do candidato sobre indução em erro, pois os critérios e parâmetros para comprovação de idoneidade e conduta ilibada (investigação social) foram clara e previamente estipulados.
“A eliminação do candidato, executada em estrita conformidade com a prévia e expressa previsão editalícia, não caracteriza ilegalidade nem abuso de poder”, disse o relator.
Drogas na juventude, questão de razoabilidade
Ao analisar o AREsp 1.806.617, a Segunda Turma determinou a reintegração de candidato eliminado na fase de investigação social de concurso da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) porque havia usado drogas oito anos antes.
Segundo os autos, o candidato, ocupante do cargo de professor na rede pública, ao preencher formulário para o concurso da PMDF em 2019, relatou que foi usuário de drogas quando tinha 19 anos de idade e que não mais tinha esse hábito. Por isso, foi considerado “não recomendado” para assumir o posto de policial.
Na primeira instância, o juízo acolheu o pedido de reintegração, mas o TJDFT reformou a sentença por entender que a admissão de policial com histórico de dependência química está subordinada à discricionariedade da administração pública, de forma que o Judiciário não poderia rever o ato questionado, salvo em caso de ilegalidade.
Postura contraditória da administração pública
No STJ, o relator, ministro Og Fernandes, destacou que a corte, ao examinar casos envolvendo a eliminação de candidatos na fase de investigação social para as carreiras policiais, entende que a sindicância de vida pregressa deve estar amparada nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
“Impedir que o recorrente prossiga no certame público para ingresso nas fileiras da PMDF, além de revelar uma postura contraditória da própria administração pública – que reputa como inidôneo um candidato que já é integrante dos quadros do serviço público distrital –, acaba por lhe aplicar uma sanção de caráter perpétuo, dado o grande lastro temporal entre o fato tido como desabonador e o momento da investigação social”, declarou o magistrado.
Quanto à tese de que o Judiciário não poderia rever o ato, o relator ressaltou que a discricionariedade conferida ao administrador não é imune ao controle do Poder Judiciário, notadamente diante dos atos que restringem direitos dos administrados, como a eliminação de concurso público, cabendo à Justiça reapreciar os aspectos vinculados do ato administrativo (competência, finalidade e forma), além da razoabilidade e da proporcionalidade.
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