Como ficam os contratos vigentes em caso de privatização de uma estatal?
O debate sobre a privatização de empresas estatais é bastante presente no cotidiano nacional e, de tempos em tempos, ganha algum reforço adicional a depender dos interesses postos. Nos últimos meses, a discussão que toma corpo é sobre a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), mas outras grandes estatais já estiveram em meio a esse mesmo debate, a exemplo dos recentes movimentos com a Eletrobras, a TAG e a Companhia Docas do Espírito Santo.
Embora relevante o debate sobre os efeitos gerais do fenômeno da privatização no Brasil, este artigo centra-se em uma questão de cunho mais prático: uma vez formalizada a privatização de uma estatal o que acontece com os contratos vigentes? Isto é, os contratos celebrados sob o influxo de normas de Direito Público podem ser mantidos ou devem rescindidos [1].
A contribuição com a resposta desses questionamentos perpassa por algumas questões preliminares. A primeira delas é definir a que nos referimos ao empregarmos o vocábulo “privatização”. Num segundo momento, é importante discutir a regência dos contratos discutidos — se submetidos à Lei Federal nº 8.666/1993 ou à Lei Federal nº 13.303/2016. Por fim, necessário avaliar a posição da estatal no contrato analisado, ou seja, se figura como contratante ou contratada.
Sobre o primeiro ponto, emprega-se a proposta classificatória de Mância e Menegat, que adotam o termo “despublicização” para os casos “em que há repasse da titularidade de bens e/ou atividades do Estado à iniciativa privada, com a redefinição dos limites de atuação do setor público e o setor privado” [2]. Dentre as diferentes técnicas de despublicização, trata-se, aqui, da alienação de participação societária, em que o Estado aliena as cotas/ações detidas à inciativa privada, tornando a estatal [3] uma pessoa jurídica integralmente regida pelas regras de Direito Privado.
Com relação ao regime contratual, apesar de a edição da Lei das Estatais ter ocorrido há mais de seis anos, as regras de transição de regime, o prazo de duração de contratos (principalmente aqueles firmados por escopo) e o tempo de adaptação necessário fazem com que muitas estatais ainda detenham contratos regidos pela Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Nesse sentido, é comum que algumas estatais, ainda hoje, possuam em vigência tanto contratos regidos pela Lei nº 13.303/2016 como pela Lei nº 8.666/1993.
No âmbito da Lei nº 8.666/1993 não há uma grande diferença de regime dos contratos firmados pelas estatais prestadoras de serviços públicos daquele aplicável a qualquer outro órgão ou entidade da administração pública direta. Os contratos dessas estatais eram submetidos aos influxos do Direito Público, com a flexibilização admitida apenas para as estatais voltadas à exploração de atividade econômica. Nesse sentido, pelo menos no caso das estatais prestadoras de serviços públicos, pode-se dizer que a figura que regia as relações com terceiros, como regra, era a de um contrato administrativo propriamente dito [4].
Com a publicação da Lei nº 13.303/2016 almejou-se um regime mais flexível, em que os contratos celebrados pelas estatais, de modo geral, fossem contratos de Direito Privado, sem a presença de cláusulas exorbitantes [5]. Com efeito, a norma não estabelece, propriamente, cláusula exorbitantes a favor das estatais, embora ainda existam alguns poucos condicionamentos de regime especial, motivando a criação de uma categoria específica de “contratos típicos das empresas estatais” [6].
Por fim, a posição da estatal no contrato também pode ter reflexos na análise realizada, seja porque eventuais cláusulas exorbitantes apenas estarão presentes quando a estatal ocupe a posição ativa de contratante no ajuste, seja porque existem figuras que admitem a contratação direta apenas em razão da qualidade dessas empresas enquanto entidades pertencentes à administração pública [7].
Postas essas diversas questões, a interconexão dos temas ajuda a traçar alguns diferentes panoramas e conclusões, a depender do polo contratual em que se encontra a estatal e respectiva lei regente.
Nos contratos firmados sob a égide da Lei nº 13.303/2016, em que já há um natural afastamento da tipificação de contrato administrativo — devendo ser celebrado instrumento contratual regido pelo Direito Privado —, a privatização da estatal não deverá ter, como regra, grandes impactos ao ajuste, em razão de sua submissão ao regime privatista.
De outro lado, nos contratos firmados sob a égide da Lei nº 8.666/1993, em que a estatal figure na posição de contratada, a manutenção do contrato com a estatal privatizada é possível. Para tanto, devem ser mantidas as condições gerais da sua contratação, podendo, inclusive, ser realizada a prorrogação desse ajuste, desde que tal possibilidade esteja prevista no instrumento convocatório e demonstrados o interesse público e a vantajosidade da medida, conforme decidido pelo Tribunal de Contas da União, na resposta à consulta objeto do Acórdão nº 2.930/2019-Plenário.
Por fim, nos contratos submetidos à Lei nº 8.666/1993, em que a estatal atue na posição de contratante, a privatização tem impacto direto e imediato para as contratações vigentes, cuja manutenção fica condicionada a uma ampla revisão de cláusulas exorbitantes, desde que haja interesse das partes em manter o vínculo contratual. Afinal, todos os pressupostos autorizadores da presença da exorbitância desaparecem em razão da mudança de regime jurídico, não mais se justificando a posição de privilégio. Além disso, essa mudança de regime e a maior configuração da autonomia privada autorizam tanto que as partes renegociem as bases do contrato, como optem por rescindi-lo, nesse último caso sem a penalização que seria inerente ao regime sancionatório dos contratos administrativos.
[1] A discussão se alinha e complementa as relevantes linhas iniciais traçadas por Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza e Pedro Henrique Braz de Vita em artigo de opinião publicado neste mesmo portal sobre os efeitos da privatização de empresas estatais sobre vínculos contratuais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-05/opiniao-privatizacao-estatais-vinculos-preexistentes. Acesso em 12/10/2023.
[2] MÂNCIA, Fernando Borges; MENEGAT, Fernando. Teoria jurídica da privatização: fundamentos, limites e técnicas de interação público-privada no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017, p. 106.
[3] Ainda na lição de Mância e Menegat, a constituição de uma estatal, por si só, já configura espécie de privatização, na modalidade da “descentralização”, caracterizando espécie de “fuga para o Direito Privado”, na relevante conceituação de Maria João Estorninho (MÂNCIA, Fernando Borges; MENEGAT, Fernando. Teoria jurídica da privatização: fundamentos, limites e técnicas de interação público-privada no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017, p. 106).
[4] Cf.: “Os contratos que tais empresas firmem para atendimento das finalidades a que estão legalmente prepostas — e assim também os efetuados pelas empresas estatais encarregadas da promoção de obras públicas — são contratos administrativos, nos mesmos termos e condições em que o seriam os travados pela Administração direta” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 215).
[5] Cf.: “As empresas estatais, como pessoas jurídicas de direito privado, em princípio celebram apenas contratos de Direito Privado, desprovidos de cláusulas exorbitantes, salvo no que essas consubstanciarem poderes contratuais unilaterais constantes dos próprios contratos de direito privado (ex.: o poder de denúncia vazia – rescisão unilateral – nos contratos de locação)” (ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 185).
[6] Esse é o tratamento dado por STROPPA, Christianne de Carvalho. O regime jurídico dos contratos das empresas estatais prestadoras de serviços públicos na Lei de Responsabilidade das Estatais – Lei nº 13.303/2016. 2019. 213f. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.
[7] É o caso das dispensas contidas no artigo 24, incisos VIII e XVI, da Lei nº 8.666/1993.
Fonte: Conjur
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