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Por ARTHUR PRADO – Advogado da União, mestre e doutorando em direito pela USP, com estágio de pesquisa na Universidade de Toronto
Poucas vezes em sua história de quase 30 anos a Advocacia-Geral da União (AGU) recebeu tanta atenção na esfera pública. Ocasionalmente, a instituição aparece na mídia em tons elogiosos, mas notícias recentes sobre a representação de servidores públicos em juízo, a postulação em ações de controle concentrado de constitucionalidade e mesmo em sua atuação consultiva e contenciosa ordinárias apontam a pouca independência da AGU em face dos interesses do governo ou, pior, de agentes políticos.
Mas a AGU deveria ser independente? Um argumento frequente defende que a AGU e procuradorias estaduais e municipais devem fazer advocacia de Estado, não de governo, o que significa representar os interesses permanentes e impessoais dos entes públicos; advogar em nome de governos mutáveis significaria arriscar a captura de advogados do Estado por bandeiras partidárias ou clientelistas. Essa é uma posição bem sintetizada por uma entrevista de Lênio Streck, parafraseada pelo jornalista Sérgio Rodas: “[se a AGU] for uma advocacia de governo, será como uma ‘advocacia de partido’, algo como os escritórios que defendem empresas. ‘Não é para isso que a advocacia pública foi pensada’”.
Defendo, porém, que a estrutura normativa vigente é mais nuançada e ambivalente do que aparenta. Constituição e leis não dão uma resposta clara a esse dilema nem fornecem os mecanismos institucionais para uma advocacia pública independente. Se desejamos que advogados públicos no Brasil sejam independentes – e é plausível que esse seja um fim desejável –, então é provável que uma reforma seja necessária.
Como instituição autônoma e uniforme no território[1], a advocacia pública não existia no Brasil antes de 1988, embora suas atribuições fossem exercidas por outras entidades, como o Ministério Público e a Consultoria-Geral da União. Foi a Constituição de 1988 que estabeleceu a AGU e as procuradorias estaduais como “funções essenciais à justiça”, título que abarca também a advocacia privada, o Ministério Público e a defensoria pública. Moreira Neto[2], um dos primeiros doutrinadores a procurarem sistematizar a advocacia pública como categoria jurídica sob a nova Constituição, aproxima as instituições públicas preconizadas no Capítulo IV da Constituição sob a alcunha de “procuraturas”. Seriam instituições responsáveis pela guarda de interesses alheios: a Defensoria Pública, os dos hipossuficientes; o Ministério Público, os difusos e individuais indisponíveis; e a advocacia pública (ou de Estado, como ele prefere), os do Estado.
A inserção da advocacia pública nesse título sugere, como Moreira Neto e muitos outros identificam, um caráter independente e insulado para a advocacia pública. De fato, as demais “procuraturas” – o Ministério Público desde a promulgação da Constituição e a Defensoria Pública desde a Emenda Constitucional 80/2014 – gozam de atributos e prerrogativas que lhes conferem um elevado grau de independência, incluindo autonomia técnica e funcional, orçamentária e administrativa, inamovibilidade de seus membros;
A Constituição atribui à AGU a representação dos três Poderes da União, e não apenas do Executivo (artigo 131, caput; as atividades consultivas são prestadas só ao Executivo), o que é incoerente com a proeminência da Presidência da República sobre o órgão. A obrigatoriedade de concurso público para ingresso nas carreiras (artigo 131, §2º) e a garantia de estabilidade conferida aos servidores públicos em geral (artigo 37, II), além da existência de uma corregedoria própria (artigo 5º da Lei Complementar nº 73/93, a LOAGU), são, todos, características de um órgão que se presta a ser independente do governo.
Por outro lado, o cargo de advogado-geral da União parece pensado para ser inteiramente subordinado à Presidência da República. Sua nomeação e exoneração incumbem ao presidente da República, que pode escolhê-lo como bem entender, desde que entre brasileiros maiores de 35 anos, com “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Advogados privados, ainda que não tenham tido contato prévio relevante com a AGU, podem e de fato já chefiaram a advocacia pública federal.
O fato de o cargo ser demissível ad nutum significa, na prática, que um presidente descontente com a atuação de um advogado-geral que atue em contrariedade aos seus interesses pode destituí-lo de seu cargo. Como geralmente se entende que esse tipo de exoneração não precisa de motivação expressa, é difícil sequer perquirir sobre a legitimidade dos interesses tidos como contrariados.
A legislação infraconstitucional enfatiza a subordinação do advogado-geral à Presidência da República, e dos demais cargos de cúpula da AGU ao advogado-geral, estabelecendo uma estrutura hierárquica com meios sólidos de controle da instituição pela cúpula. A LOAGU reitera o provimento do cargo de AGU mediante nomeação e exoneração ad nutum (artigo 3º) e subordina-o “à direta, pessoal e imediata supervisão do presidente da República”.
Diretamente abaixo do cargo de AGU (artigos 9º e 10), situam-se o procurador-geral da União e o consultor-geral da União, responsáveis por chefiar a atuação contenciosa e consultiva da União, respectivamente. Esses cargos dirigem a instituição e têm o poder, no mais das vezes, de dar a última palavra sobre documentos consultivos, peças judiciais e demais decisões administrativas a serem tomadas pelo órgão, já que não há atribuições rigidamente instituídas em lei e privativas de membros e órgãos, como ocorre no Ministério Público. O AGU pode atuar em qualquer feito, pessoalmente (artigo 4º, §1º).
Para uma parcela da doutrina[3] e jurisprudência, sobretudo na década de 1990, essa circunstância não é um defeito ou descuido legislativo, mas reflete a intenção de tornar advogados públicos auxiliares das chefias do Executivo – expressão empregada pelo ministro Ilmar Galvão em seu voto na ADI nº 217, ao entender pela inconstitucionalidade de norma estadual que reservava a nomeação do procurador-geral do Estado entre os membros da carreira. Nada poderia estar mais distante do ideal de “advocacia de Estado” sugerido pelo artigo 131, defendido por boa parte da doutrina e, como sugerem alguns dos eventos a que aludo na primeira seção deste artigo, demandado por boa parte da sociedade brasileira.
O direito brasileiro, assim, parece dividido entre pretender que a AGU e demais entidades de advocacia pública sejam órgãos de Estado, razoavelmente desvinculados dos governos e da política partidária, e negar a esses órgãos as prerrogativas necessárias para que atuem com independência. O que o constituinte esperava desses órgãos, então?
O “constituinte”, claro, não é uma pessoa, mas uma entidade abstrata, cuja “vontade” foi “formada” a partir de um processo político complexo. Para tornar a questão mais difícil, a Assembleia Constituinte não pareceu muito preocupada com a AGU, e, quando se debruçou sobre a instituição, parecia mais preocupada com sua denominação do que com sua posição institucional[4]. Talvez em 1988 ainda não houvesse clareza sobre o que viria a ser a advocacia pública; todos os olhos estavam voltados para o Ministério Público, que, ao despir-se da AGU, ganhava inúmeras prerrogativas para dedicar-se exclusivamente à “representação da sociedade”.
Entretanto, problemas como os apresentados no início deste artigo indicam que a AGU vive um dilema entre governo e Estado, subordinação e autonomia, legitimidade e burocracia. Mandato, nomeação a partir de lista tríplice e referendo pelo Senado Federal são algumas garantias que talvez pudessem dar ao AGU alguma autonomia frente à Presidência; é preciso ter cuidado, porém, para não isolar o órgão a ponto de torná-lo infenso às demandas de governos democraticamente legitimados. Compete a juristas e agentes políticos resolver esses problemas, extrapolando o escopo deste texto.
Uma conclusão possível é que não podemos cair na tentação simplória de identificar atos de subordinação e admoestar a instituição pela sua prática. A AGU não foi feita para ser o Ministério Público – pelo menos não no texto originário ou no vigente da nossa Constituição. Trata-se de um órgão que parece ora pensado como independente, ora subordinado; ora identificado com interesses públicos a serem eleitos pelas próprias burocracias, ora com interesses de governo a serem referendados pelas maiorias votantes e impostos por oficiais eleitos. Não é coerente olhar para uma AGU despida de garantias e surpreender-se com sua falta de independência.
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Agradeço a Cristiano Maia e Leandro Medeiros pelas sugestões a este artigo.
As informações e opiniões neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente as das instituições às quais ele é vinculado.
[1] Alguns estados da federação tinham procuradorias bem estruturadas antes de 1988.
[2] Ver, por exemplo, MOREIRA NETO, D. de F. As funções essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista de informação legislativa, v. 29, n. 116, out./dez. 1992, p. 90-92; _______. Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. Debates em Direito Público: Revista de Direito dos Advogados da União, São Paulo, ano 4, n. 4, out./2005, p. 23-25.
[3] MACEDO, R.. Advocacia-geral da União na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2008, p. 48.
[4] SEMER, M. M. B. F. Advocacia das Políticas Públicas: uma proposta de identidade para a advocacia pública. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da USP 2020, p. 64-65.
Fonte: Jota
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