A literatura pode (nos) salvar (d)os juristas!
Ninguém pode ser um advogado verdadeiramente competente se não for um homem culto. Se eu fosse você, esqueceria qualquer preparação técnica para o Direito. A melhor maneira de se preparar para o Direito é ser uma pessoa culta. Só assim se pode adquirir a capacidade de usar a língua inglesa no papel e no discurso e com os hábitos de pensamento claro […]. Não menos importante para um advogado é o cultivo das faculdades imaginativas, lendo poesia, vendo grandes pinturas, no original ou em reproduções facilmente disponíveis, e ouvindo boa música. Abasteça a sua mente com o depósito de muitas leituras de qualidade e alargue e aprofunde os seus sentimentos, experimentando vicariamente, tanto quanto possível, os maravilhosos mistérios do universo, e esqueça a sua futura carreira. Com os melhores votos,
Sinceros cumprimentos, Felix Frankfurter.
É muito difícil desconsiderar o período de crise que o Direito brasileiro vem suportando. Poderíamos analisar essa questão e buscar as raízes e repercussões práticas desta problemática em incontáveis fenômenos internos e externos ao “mundo jurídico”, mas este não é o enfoque do presente texto. Buscaremos nestas reflexões apresentadas ao leitor, sugerir uma possível solução para a problemática daquilo que consideramos a patologia do nosso tempo, qual seja, a decadência do ensino jurídico no Brasil, ou melhor, a crise do ensino jurídico denunciada pelo professor Lenio Streck desde há muito. Antes de tudo, alguns sintomas:
1) Informações do Índice Nacional de Analfabetismo Funcional (Inaf) dão conta de que 38% dos universitários — sim, dos universitários brasileiros — são analfabetos funcionais!
2) No Brasil, mais de 879.234 alunos ingressam nos cursos de Direito, consolidando o curso como a maior graduação do país.
3) Existem no Brasil 1.896 cursos de Direito aptos a funcionar, sendo que somente 192 faculdades possuem o Selo OAB Recomenda (certificação que busca destacar os cursos jurídicos que efetivamente têm qualidade no país).
4) Nove em cada dez instituições que oferecem o curso de Direito no Brasil aprovam menos de 30% dos seus alunos no exame da Ordem dos Advogados do Brasil.
5) Cerca de 20% dos inscritos foram aprovados no XXXVII Exame de Ordem Unificado (resultado publicado em junho de 2023).
6) O Brasil possui 1.359.282 advogados, ou seja, um a cada 157 habitantes.
7) Somente 31% dos bacharéis em Direito tornam-se profissionais jurídicos.
Essas são manifestações resultantes do evidente colapso da educação jurídica no Brasil. Mas, para melhor compreendermos a questão, faz-se necessário apontar para alguns fundamentos teóricos/filosóficos que pavimentaram o caminho de decadência. Em vista disso, nosso ponto de partida se constitui a partir do reconhecimento de que a própria institucionalização do ensino jurídico no Brasil deu-se (e se dá) desacompanhada de uma proposta revisionista dos valores epistemológicos que regulam o processo de constituição de verdades consagradas.
A ausência do desvelamento dos sentidos intersubjetivos que sustentam conceitos teóricos, repercute na perpetuação de compromissos históricos e ideológicos no âmbito do ensino (também) jurídico. E, dessa forma, é promovida a manutenção de uma racionalidade subjacente que opera e valida discursos baseados na existência de dogmas nas ciências humanas. Este fenômeno acrítico (e perigoso), podemos afirmar, sustenta o chamado senso comum teórico dos juristas.
Nas palavras de Warat, essa “separação dos conceitos de suas teorias produtoras, permite a constituição de um sistema de verdades, o qual não está vinculado a conteúdos, mas sim, a procedimentos legitimadores, determinantes para o consenso social”. E esse consenso provém de um processo de conotações institucionais estereotipadas intimamente ligadas ao poder dos significados.
Diante desse ponto de partida — e já não sabemos se influenciada ou influente na manutenção do senso comum teórico —, podemos apresentar outro fenômeno atualmente vivenciado pelos juristas: a cultura estandardizada. Afinal, seguindo este padrão denunciado pelo prof. Lenio Streck, os juristas passam a compreender seu cotidiano de forma descontextualizada (anti-hermenêutica), separando o conceito das coisas. Essa postura é, portanto, calcada na incoerência com o paradigma do Estado Democrático de Direito (cuja compreensão, por sua vez, é indissociável do giro ontológico-linguístico) e é emanada para três enfermidades que paradoxalmente constituem essa patologia (estandardização).
A primeira é a ausência de um modelo de ensino que “supere” a objetificação da realidade perpetrada pelo estudo doutrinário em códigos comentados e manuais esquematizados (na maioria das vezes, reproduzindo conceitos lexicográficos e sem nenhuma sofisticação teórica).
Somada a este fator, a produção doutrinária nacional — que a cada dia doutrina menos — vem sendo dominada por (re)produções de entendimentos jurisprudenciais (enfermidade 2). Isto é, as decisões dos Tribunais viram referência (plenipotenciária) – para a atribuição de sentido do texto, perdendo-se a especificidade da situação concreta que a gerou.
Finalmente, a proliferação dessa cultura estandardizada é acompanhada por um fenômeno denominado por Lenio Streck como “neopentecostalismo jurídico”, cuja função é “vender” facilidades aos estudantes e aos profissionais que pretendem passar em concursos públicos, com publicações que já no título expõem o seu objetivo: “entenda o Direito de forma fácil”.
Ocorre que o Direito é um fenômeno complexo, inter relacionado com outras áreas — também complexas e abstratas — das ciências humanas. E, percebam, este fenômeno de estandardização se desenvolve e se perpetua na medida em que passamos a admitir o Direito como simples atividade técnica e cada vez mais especializada (ou seja: ao reproduzirmos o senso comum teórico).
Bem por isso é que acreditamos que, para combater essa crise, o ensino jurídico precisa retomar seu lado humanístico e interdisciplinar, considerando o mundo prático, a faticidade e a busca pelo desvelamento dos fenômenos. Esta é a única forma de desconstruir a concepção de Direito como mero instrumento, a partir de categorias, enunciados performativos, posturas acríticas e a-históricas.
Passamos a apostar, então, no estudo do Direito na/pela Literatura justamente porque as narrativas literárias nos permitem apreender as tensões que marcam a dinâmica social do Direito e a (re)humanizá-lo. Por exemplo, ao lermos Carolina Maria de Jesus, passamos a compreender o desespero, a fome, a miséria e a falta de esperança que é a realidade de grande parte do povo brasileiro. Carolina revela: “Estou sem ação com a vida”. A partir da própria experiência, em seu diário, fala do dia em que, faminta, catou linguiças no lixo de um frigorífico: “(…) tenho um apetite de Leão”, ela se justificou. Verdade seja dita: essa passagem nos ensina sobre o sentido que sustenta o conceito de furto famélico.
Evidente, pois, que não podemos limitar a compreensão do Direito à instrumentalidade técnica inerente e fundamental ao processo judicial, afinal, o processo também faz parte do mundo. Para cada manual em que encontramos uma descrição de um Direito apartado da realidade, temos à disposição centenas de obras literárias que apresentam o Direito imerso na realidade cultural a que pertence, ampliando os horizontes de compreensão e propiciando a revisão crítica dos sentidos dos conceitos jurídicos.
Diante da realidade de crise denunciada, a literatura parece ser uma ótima forma de nos salvarmos!
Fonte: Conjur
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