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A terceirização e o concurso público

Analisam-se os principais aspectos acerca da possibilidade de terceirização das atividades do serviço público, sem a prestação de concurso público prévio, especialmente depois da edição do Decreto 9.739/2019.

 

Analisam-se os principais aspectos acerca da possibilidade de terceirização das atividades do serviço público, sem a prestação de concurso público prévio, especialmente depois da edição do Decreto 9.739/2019.

I – O FATO

O governo endureceu as regras para realização de concursos públicos. O Decreto 9.739, de 28 de março de 2019, editado pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro Paulo Guedes (Economia), aumenta as exigências para os órgãos do Governo pedirem novas contratações para servidores de carreira.

Para pedir um concurso, o órgão terá que apresentar ao menos 14 informações ao Ministério da Economia, responsável por autorizar as vagas. O órgão deverá demonstrar que as atividades que justificariam o concurso público não poderiam ser prestadas por equipes terceirizadas, por exemplo (art. 6º, XIV).


II – A IMPOSSIBILIDADE DA TERCEIRIZAÇÃO DE ATIVIDADE-FIM NO SERVIÇO PÚBLICO

No Brasil, a introdução da terceirização no serviço púbico se dá no governo militar, que, em 1967, fez uma reforma administrativa do aparelho de Estado, tendo por objetivo impedir “o crescimento desmesurado da máquina administrativa”, tal como justificado no Decreto-Lei (DL) no 200/1967. Neste decreto, definia-se a descentralização da administração pública, mediante a contratação ou concessão de execução indireta de serviços pelo setor privado.

Em 1970, a Lei no 5.645 veio complementar o DL no 200/1967, ao definir quais serviços poderiam ser contratados de forma indireta (transporte, conserva-ção, custódia, operação de elevadores, limpeza, e outras assemelhadas), dispondo que esses deveriam ser “de preferência” contratados através de empresas privadas prestadoras desses serviços.

Entretanto, é com a Reforma do Estado no governo Fernando Henrique Cardoso, iniciada em 1995, que se estabelecem todas as diretrizes e a concepção de um Estado gerencial, no qual a privatização e a terceirização assumem lugar central. Essa reforma, em consonância com as políticas neoliberais, definiu três áreas de atuação: i) as atividades exclusivas do Estado, constituídas pelo núcleo estratégico; ii) os serviços não exclusivos do Estado (escolas, universidades, centros de pesquisa científica e tecnológica, creches, ambulatórios, hospitais, entidades de assistência aos carentes, museus, orquestras sinfônicas, entre outras), que deveriam ser publicizadas; e iii) a produção de bens e serviços para o mercado (retirada do Estado por meio dos programas de privatização e desestatização). Fora das atividades principais, estão as “atividades ou serviços auxiliares” (limpeza, vigilância, transporte, serviços técnicos de informática e processamento de dados, entre outras), que deveriam ser terceirizadas, submetidas a licitação pública.

Não pode a Administração terceirizar atividades-fim no serviço público.

Hoje, a súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) autoriza a terceirização de atividades secundárias na administração pública, com aplicação, principalmente, em serviços de limpeza e vigilância, envolvendo atividades sob o regime trabalhista.

O  Decreto no 2.271/1997 buscou reproduzir, no serviço público, o mesmo espírito do Enunciado 331 do TST, que diferencia atividade-meio e atividade-fim, proibindo a terceirização nesse último tipo de atividade.

Outras leis incentivaram e legalizaram a terceirização da atividade-fim no serviço público: a Lei no 9.637/1998, que estabelece a subcontratação pelo Poder Executivo de OSs (pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, para atuar nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde); e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000 – cujo objetivo principal de controle das contas públicas é reduzir as despesas com o funcionalismo público –, que inibiu a realização de concursos públicos e incentivou a terceirização, pois as despesas com a subcontratação de empresas, contratação temporária, emergencial e de comissionados não são computadas como “pessoal”.

No bojo do debate e das manifestações contra o PL no 4.330 (PL no 30), que deu origem à Lei no 13.429, o STF julgou, em abril de 2015, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI no 1.923) sobre as OSs, que vinham sendo utilizadas amplamente na área da saúde pública. A decisão, que julgou a subcontratação das OSs como constitucional, implica a liberalização da terceirização para atividades-fim do Estado, a exemplo da educação e da saúde pública, entre outras.

A terceirização traz  várias  modalidades de ataques aos direitos, ao padrão salarial e às condições de trabalho do funcionalismo, consubstanciadas nos ajustes fiscais implantados pelos vários governos desde o início dos anos 1990 até hoje, ajustes esses recomendados e exigidos pelas instituições e classes que representam o capital financeiro globalizado, cujo ápice ocorreu em 2016, com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 241 (ou PEC no 55), que congelou os gastos sociais por vinte anos, com o claro objetivo de fazer superavit primário, a fim de se transferirem recursos públicos para as instituições privadas credoras da dívida pública brasileira.

Anote-se, de início, que há atividades onde se torna inconcebível a terceirização:

a) cargos que envolvam tomadas de decisões;

b) cargos considerados estratégicos;

c) cargos que envolvam o exercício de um poder de polícia.

A terceirização é forma de desviar a Administração do concurso público.

Por isso, que temos que a terceirização é forma de privatizar atividades inerentes ao Estado, dentro de um novo caráter de Estado-liberal.

Na linha da doutrina, tem-se que a terceirização no serviço público pode ser qualificada como o principal instrumento de privatização interna do Estado, concretizando a metamorfose que dá origem ao denominado “estado gerencial” ou “governo empresarial”.


III – A EXIGÊNCIA DO CONCURSO PÚBLICO PARA ADMISSÃO DE PESSOAL NO SERVIÇO PÚBLICO

A Constituição Federal exige o concurso público de provas ou de provas e títulos para investidura em cargo ou emprego público. Ademais é mister que haja pertinência nas disciplinas escolhidas para comporem as provas, assim como os títulos, a que se reconhecerá valor com a função a ser exercida.

Por sua vez, Adilson Dallari(Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1990, pág. 36) define concurso público como sendo “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição de conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados”.

A Constituição de 1988 utiliza a palavra investidura para designar o preenchimento de cargo ou emprego público. Como bem disse Celso Ribeiro Bastos(Comentários à Constituição do Brasil, volume III, tomo III, 1992, pág. 67), não se fala mais, como ocorreu, no passado, em primeira investidura, para deixar certo de que se cuida de todas as hipóteses em que se dá a condição de ingresso no quadro de servidores públicos.

Assim a Constituição repudia aquelas modalidades de desvirtuamento da Constituição anterior criadas por práticas administrativas, que acabaram por custar o espírito do preceito. Exemplificou Celso Bastos com o que acontecia com o chamado instituto da transposição, que com a falsa justificativa de que o beneficiado já servidor público era, guindava-o para novos cargos e funções de muito maior envergadura e vencimentos que não nutriam, contudo, relação funcional com o cargo de origem, com o beneplácito da legalidade sob o fundamento de que primeira investidura já não era.


IV – A QUESTÃO DA CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA

Os servidores da Administração direta ou indireta, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de empregados ou servidores de suas subsidiárias e controladas não podem ser contratados temporariamente.

Os contratados temporariamente não podem receber atribuições, funções ou encargos não previstos no respectivo contrato, ser nomeados ou designados, ainda que a título precário ou em substituição, para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, nem terem a sua contratação renovada, exceto nos casos de assistência a situações de calamidade pública, mediante prévia autorização do Ministro de Estado ou Secretário da Presidência competente.

As infrações disciplinares atribuídas ao pessoal contratado nos termos desta eram apuradas por sindicância, concluída no prazo de trinta dias e assegurada ampla defesa.

O contrato firmado extinguia-se, sem direito a indenizações, pelo término do prazo contratual ou por iniciativa do contratado.

O contratado temporariamente tinha o tempo de serviço prestado contado para todos os efeitos.

A partir de 1995, o Presidente da República editou nada menos do que 46 Medidas Provisórias com a numeração 1.887, que, apreciadas pelo Congresso Nacional, originaram a Lei nº 9.849 de 26 de outubro de 1999 que trata do assunto primeiramente trabalhado pelo legislador na lei de 1993.

Publicada em uma edição extra do Diário Oficial da União em 27 de outubro do mesmo ano, a Lei nº 9849 alterou os arts. 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 9º da Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993.

Outra Lei federal ordinária, a de número 10.667, de 14 de maio de 2003, também tratou do assunto inicialmente previsto pela Lei nº 8.745. A primeira modificou os arts 2º, 3º, 4º, 5º e 7º e 12 da lei de 1993.

As modificações realizadas para a contratação temporária de servidores públicos foram distintas.

Primeiramente destaca-se o acréscimo ao texto do art. 2º, inciso III, que previa a realização de recenseamentos como hipótese de necessidade de contratação temporária, da previsão de outras pesquisas estatísticas realizadas pela fundação IBGE.

Com relação a situação desses servidores temporários, Adilson Abreu Dallari (Regime constitucional dos servidores públicos, 2º edição, pág. 126) entendia que “deve ser estipulado o processo de seleção do pessoal a ser contratado, já que a temporariedade não justifica sejam postergados os princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade”. Não seria necessário, para a sua contratação, o rigor de um concurso público, mas não poderia ser uma escolha pessoal, subjetiva, imotivada, sem qualquer critério objetivo.

Mas, veja-se bem, é preciso atender ao espírito da Constituição Federal, evitando um arrombamento dessa abertura que é dada para contratação dos servidores temporários, impedindo que essa contratação temporária sirva, como já serviu antes da Constituição de 1988, para contornar a exigência do concurso público levando á admissão indiscriminada de pessoal, em detrimento do funcionalismo público.

Mas, de toda sorte, a contratação somente seria feita a título excepcional para atender a necessidades urgentíssimas da Administração. Não mais que isso.

Em síntese, é nula a contratação de servidor sem a prévia observância de prévia aprovação em concurso publico. Não há geração de quaisquer efeitos jurídicos válidos em relação aos empregados eventualmente contratados, ressalvados os direitos à percepção dos salários referentes ao período trabalhado, e, nos termos do art. 19 – A da Lei 8.036/90, ao levantamento dos depósitos efetuados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

 

ROMANO, Rogério Tadeu . A terceirização e o concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24 , n. 5761, 10 abr. 2019 . Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73007. Acesso em: 3 ago. 2022.



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