Da utopia à realidade: os desafios do ensino jurídico no Brasil
O estudante de Direito, como qualquer outro, enfrenta diversas dificuldades ao longo da sua trajetória acadêmica. Porém, nenhuma delas supera o temor ao “sexto ano”. Ou seja, cumprida a carga horária do curso, apresentado o trabalho de conclusão (TCC), aprovado no exame da OAB, qual caminho seguir após o término da graduação? Como ingressar no mercado de trabalho? Como se destacar em um mercado de trabalho que possui a maior proporção de advogados por habitante do mundo [1]? Como iniciar na advocacia? O concurso público é a melhor opção?
Essas dúvidas são um reflexo de muitas questões que se relacionam, inclusive, com aspectos iniciais do curso: os estudantes, em sua maioria, elegem o curso de graduação que, supostamente, irá nortear toda uma vida, de forma muito precoce e sem conhecer muito bem as perspectivas de mercado e de atuação profissional. E, mesmo ao longo do curso, nem sempre são claras as informações sobre como funciona efetivamente o mercado de trabalho jurídico, a forma de ingresso nas carreiras jurídicas, bem como sobre as possibilidades de atuação.
Embora o mercado de trabalho, geralmente, seja fator decisivo na escolha do curso, o jovem estudante conhece muito pouco sobre como esse mercado funciona e o que esperar dele, especialmente diante das inovações tecnológicas, seus impactos e demandas jurídicas.
Quando muito, possuem alguma informação e muita romantização/idealização sobre as carreiras mais tradicionais: advocacia, magistratura, Ministério Público, defensoria, carreiras policiais, procuradorias e etc. e, mesmo assim, ignoram o caminho para atingir a carreira que (inicialmente) pretendem (da preparação, ingresso à atuação). E, não raras as vezes, esse desconhecimento se perpetua até o último ano do curso, o que gera insegurança e frustração.
Segundo dados do Ipea/202I (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada): “dos 114,8 mil indivíduos se bacharelaram em direito a cada ano entre 2015 e 2019, apenas 52,1 mil se ocuparam como profissionais jurídicos. Ou seja, em média, ano a ano, 54,6% dos graduados não se ocuparam na própria área de formação” [2]. Dentro dessa perspectiva, estão incluídos os que não conseguiram atuar na área, seja pela dificuldade de ingresso no mercado específico, seja por optarem por uma atuação profissional extrajurídica. Vale destacar que aspectos territoriais e sociais impactam diretamente no acesso/oportunidade, capacitação e condições de trabalho, bem como na remuneração mais atrativa ou não.
De todo modo, é importante que as instituições de ensino superior (IES), durante o curso, oportunizem informações mais amplas e detalhadas sobre as carreiras jurídicas, não apenas referentes aos concursos públicos e áreas mais tradicionais da advocacia, mas também em relação à outras possibilidades de atuação, tais como árbitro, pesquisador, carreira docente, diplomacia, consultor estratégico para startups, dentre outras.
Mesmo na advocacia, é possível atuar nos tradicionais consultivo e contencioso, mas também com a advocacia preventiva (compliance ou regulatória) e em novas áreas (Direito Digital, Direito Desportivo, Direito Educacional, Direito Aduaneiro, etc.), por exemplo.
Nesse sentido, o Ministério da Educação tem se preocupado com atualização do conteúdo do curso e com o emprego de tecnologias educacionais para a formação dos alunos [3]. O Conselho Nacional de Educação também, recentemente, criou uma Comissão Especial de Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito, com o objetivo de modernizar o currículo do curso e alinhá-lo às demandas de mercado [4].
Ademais, o mercado demanda profissionais que tenham uma capacidade de diálogo com outras áreas do conhecimento, sejam proativos, colaborativos e empreendedores, dentre outras características que o modelo tradicional de ensino jurídico, pautado nas longas aulas expositivas, já não é capaz de suprir e, muito menos, de capturar a atenção dos estudantes que, comumente, podem ter acesso a conteúdo similar por outros meios, tais como videoaulas, podcasts, dentre outros.
Aliás, esse é um dos grandes desafios docentes, notadamente, nos últimos semestres do curso: reter a atenção do aluno que, já aprovado no exame da OAB, não vê mais utilidade no conteúdo teórico ministrado.
Daí porque é frequente a apatia dos discentes em sala de aula, especialmente, na reta final da graduação, fruto da perda da motivação ao longo do curso, por diversos fatores: pessoais, incerteza ou desconhecimento sobre o mercado de trabalho, mas, também, porque não estão recebendo algo que considerem útil para o “sexto ano”. Assim, é fundamental repensar não apenas o conteúdo do curso de direito, mas também o papel comunicacional e o protagonismo do docente em sala (sair do lugar de reprodutor de conteúdo e assumir o papel daquele que compartilha experiências, que instrui, que apresenta aspectos práticos da atuação profissional), bem como metodologias que permitam uma maior integração do aluno na construção do conhecimento, além do aprimoramento e melhor direcionamento das atividades complementares e do estágio .
O estágio, como atividade que permite o contato do aluno com a atuação prática, quando bem conduzido e fiscalizado, é fundamental para a atuação profissional futura. Assim, quanto mais diversificados ao longo do curso, maiores as chances de que o estudante conheça e se identifique com determinada área de atuação. É uma oportunidade salutar de simular situações e ter contato com a prática profissional. Dessa forma, também é papel das IES acompanharem adequadamente a realizações dos estágios, bem como favorecerem o acesso às oportunidades de estágio aos estudantes.
Igualmente é fundamental fazer visitas técnicas em estruturas com as quais os estudantes irão trabalhar para reduzir o distanciamento entre a teoria e prática, bem como para que conheçam as discrepâncias entre o que é abordado em sala de aula com a realidade da atuação profissional e possam identificar: se desejam trabalhar com essa realidade; se positivo, que tipo de atuação terão no futuro e, principalmente; como podem contribuir com alguma perspectiva de mudança de paradigma. Tudo isso com o objetivo de diminuir ou evitar o desencantamento profissional futuro.
Outras atividades muito produtivas e que aproximam a teoria da prática, são as simulações (audiências, sustentações orais e júris simulados, por exemplo), escritórios modelos, clinicas de Direitos Humanos, especialmente, as competições. Existem diversas competições nacionais e internacionais e em áreas diferentes do direito, das quais os alunos de graduação podem participar, tais como a Competição Brasileira de Direito e de Processo Penal, a Competição de Direito, Tecnologia e Arbitragem e a Competição Brasileira de Processo Civil, dentre outras. Nessas atividades os alunos têm oportunidade de desenvolver teses, peças práticas, oratória e se sentem estimulados pela proximidade com a atuação real, bem como pela competitividade que, nessas situações, funciona como catalisador para a criatividade e proporciona maior segurança na atuação profissional futura.
Por fim, cumpre mencionar o papel relevantíssimo dos grupos de estudos e de palestras/semana jurídica e outros eventos, que permitem aos alunos estudarem temas complementares ao conteúdo programático do curso, atualizarem e trocarem seus conhecimentos dentro e fora da Universidade, bem como propiciam algo que, para atuação jurídica é fundamental, o estabelecimento de uma rede de contatos (o famoso “networking”).
O ensino jurídico reclama uma revisão e um aprimoramento em diversos aspectos para que proporcione aos egressos maior possibilidade de sucesso no mercado de trabalho jurídico.
Enfim, as IES possuem papel fundamental para a garantia de uma formação sólida que permita ao egresso a inserção com maior segurança no mercado de trabalho e na construção de um ensino jurídico que atenda às necessidades dos alunos, do mercado e da sociedade.
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