O Procurador Federal associado à ANAFE e Editor-chefe da Revista da Advocacia Pública Federal, Frederico Rios Paula, teve seu artigo publicado na íntegra:
Declaração de Interferência Prévia e interfaces regulatórias – Como a regulação econômica pode contribuir com a proteção socioambiental?
No âmbito das discussões do marco regulatório para produção de energia de fonte renovável em alto mar (PL 11.247/2018[1]), a chamada Declaração de Interferência Prévia (DIP) é definida como “declaração emitida pelo Poder Executivo com a finalidade de identificar a existência de interferência do prisma em outras instalações ou atividades” (art. 3°, VI). A entidade pública responsável pela centralização dos requerimentos dessa declaração e o procedimento para sua obtenção será definido em regulamento (art. 6°, § 4°).
O Poder Executivo já havia editado o Decreto 10.946, de 25 de janeiro de 2022, que dispõe sobre a cessão de uso de espaços físicos e o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore.
Um dos requisitos para tal cessão, previsto no art. 10, é a apresentação da DIP ao Ministério de Minas e Energia, com a mesma definição mencionada (art. 2°, VI), emitida por diversos órgãos e entidades federais, tais como os Comandos da Marinha e da Aeronáutica, os Ministérios da Infraestrutura (atualmente, dos Transportes e dos Portos e Aeroportos), da Agricultura e Pecuária e do Turismo, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Quanto às autarquias ambientais federais[2], cabe ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informar a existência de outros processos de licenciamento ambiental em curso para a exploração da área. Já o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) deve esclarecer se a área estiver localizada no interior ou próxima de unidade de conservação e quanto aos possíveis usos futuros da área. Trata-se de mecanismo que, em certa medida, visa a reduzir o problema da informação da regulação pública por meio da centralização.[3]
Embora em perspectivas e com finalidades distintas, há outros mecanismos de interfaces da regulação econômica de outros setores com a gestão socioambiental. Vejamos alguns exemplos.
Na regulação do segmento de distribuição de energia elétrica, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) editou a Resolução Normativa 1.000, de 7 de dezembro de 2021. Segundo o inciso VIII do art. 67, é exigível a apresentação de licença ou declaração emitida pelo órgão competente se as instalações ou a extensão de rede de responsabilidade do consumidor e demais usuários ocuparem áreas protegidas pela legislação, tais como unidades de conservação, reservas legais, áreas de preservação permanente, territórios indígenas e quilombolas.
Na regulação da exploração e produção de petróleo e gás natural, a Portaria Interministerial MME/MMA 1, de 22 de março de 2022, prevê, no art. 3°, manifestação conjunta do MME e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com base em parecer do ICMBio e do Ibama ou de órgão ambiental estadual.
Nessa manifestação, devem ser excluídas, mediante justificativa, entre outras, as áreas dos blocos a serem ofertados de forma permanente pela ANP que “apresentem eventual sobreposição às unidades de conservação, nos termos da Lei 9.985/2000, excetuadas suas zonas de amortecimento e as Áreas de Proteção Ambiental (APA), que compõem o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), conforme Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), cujas bases de dados georreferenciadas oficiais encontram-se disponibilizadas no sítio do MMA e do ICMBio. No mesmo sentido, áreas com ocorrência de espécies da flora e da fauna ameaçadas de extinção”.
Na regulação bancária, o Banco Central editou a Resolução CMN 5.081, de 29 de junho de 2023, que ajusta normas referentes a impedimentos sociais, ambientais e climáticos para concessão de crédito rural. A Seção 9 do Capítulo 2 do Manual de Crédito Rural (MCR) passou a vigorar com alterações que impedem a concessão de tal benefício financeiro.
Diante disso, não será concedido crédito rural, para empreendimentos situados em imóveis rurais total ou parcialmente inseridos: (1) em Unidade de Conservação, desde que registrado no CNUC do MMA, salvo se a atividade econômica se encontrar em conformidade com o Plano de Manejo da Unidade de Conservação, respeitadas as disposições do art. 28 da Lei 9.985/2000 e as disposições específicas aplicáveis à população tradicional beneficiária ou residente, na forma do Decreto 4.340/2002; (2) em terras ocupadas por indígenas homologadas, regularizadas ou definidas como Reserva Indígena no Sistema Indigenista de Informações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), exceto se o proponente pertença aos grupos tribais ou às comunidades indígenas ocupantes ou habitantes da terra indígena na qual se situa o empreendimento; e (3) em área embargada por órgão ambiental competente, Federal ou Estadual, conforme as competências de que tratam os arts. 7º e 8º da Lei Complementar 140/2011, decorrente de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel rural e desde que registrado na lista de embargos do Cadastro de Autuações Ambientais e Embargos do Ibama.
A discussão permeia a segurança jurídica, decorrência necessária do Estado de Direito, traduzida na faculdade do indivíduo de poder conduzir, planejar e conformar sua vida de maneira autônoma e responsável à luz do ordenamento jurídico. Esse princípio pode ser visto sob duas perspectivas. Uma, objetiva, fundada na certeza e na previsibilidade do ordenamento jurídico. Outra, subjetiva, relacionada com a proteção da confiança e das expectativas legítimas do indivíduo, tal como aquele que busca o consentimento do Poder Público.
E daí vem o questionamento: quais outras contribuições a regulação econômica pode dar em benefício da segurança jurídica e da proteção socioambiental?
O legislador, o chefe do Poder Executivo ou mesmo as agências reguladoras no âmbito de seu poder normativo precisam prever outras hipóteses de interfaces regulatórias que prestigiem a integração e a coerência do sistema jurídico e/ou funcionem como indutor da conservação da sociobiodiversidade do país. Afinal, um dos princípios constitucionais da ordem econômica é a defesa do meio ambiente.
A previsão de uma DIP no regime jurídico de outros setores estratégicos poderia evitar desgastes e pressões frutos de respostas díspares ou contraditórias do Estado brasileiro ao particular. Cita-se, por exemplo, a emissão de autorizações para a instalação e o funcionamento de estações transmissoras de radiocomunicação e de infraestruturas de suporte, ou mesmo para atividades minerárias no interior de espaços territoriais especialmente protegidos.
Autorizações desconectadas da realidade socioambiental da área envolvida afastam-se da segurança jurídica e da sustentabilidade que se espera da política regulatória estatal. Por isso, nesta perspectiva, é tão importante a manifestação prévia do órgão ambiental, seja de natureza autorizativa ou meramente declaratória.
Será que constar no ato de consentimento de determinada entidade reguladora que este não exclui licenças e autorizações de outros órgãos é suficiente? Na prática, não é incomum que particulares batam às portas do Poder Judiciário defendendo a legalidade de determinada atividade no interior de unidades de conservação federais por terem obtido autorização (aqui, usada em sentido amplo) de entidade reguladora (não integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente, o Sisnama). Nessa linha de entendimento, os órgãos estatais precisam articular-se e estabelecer processos e procedimentos dialógicos entre si, e não somente voltados aos próprios administrados/agentes regulados.
Não se quer, com esta provocação, onerar excessivamente Ibama e ICMBio e transformá-los em balcão emissor de declarações, tampouco condicionar o consentimento da entidade reguladora ao da entidade ambiental. Longe disso. Se no meio ambiente é melhor prevenir do que remediar, torna-se importante aproveitar boas medidas normativas e considerar possibilidades de aprimoramento jurídico da gestão socioambiental a partir da regulação econômica.
Fonte: Anafe
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