Pelo direito de ação com uma advocacia livre e representativa
As repúblicas democráticas liberais foram as sucessoras do absolutismo monárquico, em que a figura de El Rey concentrava no titular por sucessão hereditária os poderes de chefe de Estado e de governo, mas ia muito além disso, pois seus poderes não encontravam limites na soberania dos domínios de sua coroa. Na obra referencial de organização do Estado, Montesquieu em seu Espírito das Leis já advertia “a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites” e “Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder” .
A Revolução Francesa (1789-1799) pôs fim a monarquia absolutista na França. E o novo Estado-Nação que se formou principalmente a partir da revolução francesa como novo modelo a substituir o anterior poder absoluto dos reis, estava, no pensamento de Montesquieu, dividido em três segmentos de forma a tornar o governo moderado, justo e no interesse de todos:
(1) O Poder Legislativo como o primeiro que faz, corrige ou revoga leis.
(2) O Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes, “faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões” e se chama a este poder simplesmente, “o poder executivo do Estado”; e
(3) O Poder Executivo das coisas que que dependem do Direito Civil, que pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos e Montesquieu também denomina Poder de Julgar.
Para Montesquieu o que hoje chamamos Poder Judiciário era o mais “terrível entre os homens”, vindo a ter que submeter a rigorosa cautela na investidura dos seus membros, modo de formar os tribunais e o exercício como modo de decidir dos juízes, membros que deveriam ser extraídos do corpo do povo, atuando apenas durante o tempo necessário e sendo permitido ao acusado, nos termos da lei, a escolha dos Juízes ou pelo menos a possibilidade de recusá-los como forma de evitar perseguições políticas ou entre classes sociais:
“(…) se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto exato da lei. Se fosse uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos” (MONTESQUIEU, 1689-1755).
Pois bem, no nosso sistema judicial estão insculpidos como direitos e garantias fundamentais que, a todos sob soberania do Estado brasileiro se submetem, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” e “não haverá juízo ou tribunal de exceção;” restando, de forma clara, que o exercicio dos poderes como fundamento do Estado Democrático de Direito, é o emanado do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição , devendo o Estado e a sociedade respeitar os direitos e garantias fundamentais.
Observem a leitura do artigo 133 da Constituição, que combinado com os artigos 1º e 3º da Lei 8.906/1994, que instituiu o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, estabelece:
“Constituição da República Federativa do Brasil
Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
Lei 8.906/1994
Art. 1º São atividades privativas de advocacia:
I – a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;
[…]
Art. 3º. O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).”
Sendo assim, desde o momento de segmentação e repartição dos poderes do Estado, tal partilha do exercício dos poderes se constituiu em uma “salvaguarda” do não retorno da sociedade ao arbítrio de uma única pessoa dotada de poderes absolutos e inquestionáveis, evitando a ascensão de novos reis absolutistas ou ditadores, caindo por terra as palavras atribuídas a Luiz 15, Rei de França, a quem se atribui a frase “L’État c’est moi” ou o Estado sou Eu, garantindo-se no concerne ao direito de acesso ao Poder Judiciário, o chamado direito de ação.
Em tempos atuais, o direito de ação — na maior parte das situações — na forma da lei conforme estabelecido pelo artigo 133 da Constituição, está condicionado a postulação através de um profissional que, em sua atividade atua com a mais alta importância pública, instrumentalizando a pretensão daquele que busca acessar o Judiciário. Assim, qualquer obstáculo ou cerceio do direito de ação, que é da parte que constitui o advogado, é um obstáculo à Justiça e, também, uma violação aos fundamentos da República e ao próprio Estado Democrático de Direito.
Neste contexto, podemos exemplificar o anseio por Justiça principalmente quando tratamos de defesa do consumidor e das chamadas ações coletivas de consumo, onde percebemos a força de uma demanda conjunta acionando o Judiciário no enfrentamento a grandes grupos de interesses. O próprio Código de Proteção e Defesa do Consumidor, instituído pela Lei 8.078/1990, em seu artigo 44 prevê a obrigatoriedade de que os órgãos públicos de defesa do consumidor mantenham “cadastros atualizados de reclamações fundamentadas contra fornecedores de produtos e serviços, devendo divulgá-lo pública e anualmente”, exibindo listagens com indicador de solução das reclamações. Talvez com base nessa norma, os tribunais — visando sugerir melhor índice de resolução de demandas de consumo pelos fornecedores — passaram a divulgar listagens apontando bancos e prestadores de serviços públicos, àqueles geralmente com grande carteira de clientes e que por adotarem formas massificadas de atendimento, acarretam na esfera administrativa ausência de solução das reclamações. Tal atuação acabaram por fazer crescer o senso comum da busca imediata da solução no Judiciário, em particular nos Juizados Especiais já que nada se resolvia na esfera administrativa dos fornecedores.
Hoje, ante o elevado custo da judicialização das relações sociais no Brasil, que em muito decorre da ausência de atuação dos órgãos administrativos de defesa do consumidor ou da falta de instrumentos para estes atuarem de forma mais efetiva na repressão e prevenção dos problemas, ações de consumo são uma significativa fatia do passivo de demandas por julgar ou que dão entrada a cada ano nos tribunais. Pelo menos é o que se pode verificar anualmente com a divulgação do Justiça em Números, estudo e quantificação de demandas elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Porém os dados apontam também que, são baixos os índices de resolução das demandas nas esferas administrativas, o que faz permanecer a litigância de milhares de consumidores que se defrontam com lesões ou ameaças a seus direitos.
O já citado direito fundamental constitucional, correspondente ao princípio do acesso à Justiça, o princípio da inafastabilidade da jurisdição tem previsão no artigo 5º, inciso XXXV, torna legitimo, e mais ainda, amparado em direito fundamental o direito de qualquer um levar a juízo ameaça ou lesão de direito. Surpreendentemente surge tanto no Judiciário como na parcela da advocacia ligada a fornecedores o fomento do conceito de litigância ou advocacia predatória, este simplesmente fundado no fato de um advogado, que como vista tem atuação instrumental, ou grupos de advogados em certas comarcas, ajuizarem muitas ações com base em relações jurídicas com identidade em face do mesmo fornecedor ou segmento de produtos ou serviços.
Mas afinal, pergunta-se se é vedado que um mesmo advogado ou grupos de advogados, identificando problemas reais de partes em determinadas situações jurídicas, propor ou ajuizar ações para buscar solução para ameaça ou lesão de direito? A existência de múltiplas ações com os mesmos advogados indica por si só atuação irregular da advocacia? Pela leitura atenta da Constituição e da legislação processual parece-nos que a resposta é negativa para ambas as questões. A nosso sentir o conjunto de matérias, artigos e textos escritos recentemente, inclusive com criação de grupos de trabalho no âmbito CNJ e nos tribunais, para combate ao que se chama de litigância e advocacia predatória, vão de encontro à ideia de que consumidores exerçam o seu direito de ação de exigir do Estado a prestação jurisdicional adequada a demanda que se busca tutela, não se pode confundir a multiplicidade de demandas sob o mesmo tema com litigância predatória ou advocacia predatória, que pode se verificar no atuar ilícito ou desleal de certos profissionais, mas não pelo número de ações semelhantes que patrocinam.
Acreditamos que não se pode induzir, algumas vezes de forma maliciosa, a materialização do direito de ação com litigância predatória, que se constituída por ilícitos penais ou processuais, sempre devem ser fundamento para a punição e não atingimento da finalidade ilegitimamente almejada. A condução deve ser, portanto, como eventualmente ocorre por parte das autoridades judiciárias, verificar se em casos semelhantes ou mesmo sem semelhança, ocorrem indícios ou elementos de ilícitos praticados, atuando nessa hipótese com os instrumentos que a lei já prevê contra os infratores, evitando-se a todo custo permitir o cerceio ao direito fundamental de ação garantido a todos e a todas.
é presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-RJ, bem como membro consultor da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB).
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