Desenho de política pública de pessoal: uma agenda urgente
O avançar da tramitação do PL 2.258 de 2022, que se apresenta como a “Lei Geral dos Concursos”, traz a matéria à luz, com uma hipervalorização do tema do procedimento de ingresso de servidores, nos múltiplos regimes jurídicos possíveis, como chave de sucesso para a qualificação do quadro de pessoal da administração pública.
O debate, quero crer, vem se apresentando de maneira simplificadora. A garantia de provimento de servidores públicos aptos ao desenvolvimento adequado das tarefas postas à administração pública é sem sombra de dúvida, questão relevante — mas está longe de ser o único componente a merecer valorização.
Indispensável uma pequena digressão histórica. A disciplina de pessoal veio à luz na Constituição Federal a partir de uma perspectiva predominantemente reativa. Um acervo de episódios históricos escandalosos de ingresso, progressão e transformação de cargos públicos havidos em períodos mais obscuros inspirou um modelo constitucional muito rígido, em que o princípio concursivo se apresentava não só como condição sine qua non para a investidura em cargos públicos, mas determinava toda a vida funcional, sob pena de caracterização de desvio de função. Esse padrão resultou num quadro de pessoal desprovido de alternativas de mobilidade, condenando o servidor ao engessamento profissional, ou à irregularidade de seu exercício funcional.
Transcorridos 35 anos de vigência da Carta de 1988, o entorno da matéria do componente humano na execução de serviços em geral sofreu profundas transformações, seja no campo privado, seja no setor público — e o quadro normativo segue aquele originalmente desenhado. Nestes termos é que entendo que o problema público que a rigor se apresenta — seleção e fixação de profissionais nos quadros da administração pública — está longe de se esgotar com a simples reconfiguração do modo de seleção para ingresso nos quadros do poder público.
Chama a atenção a referida pauta legislativa quando se tem em conta um discurso recorrente, e iniciativas legislativas anteriores, que sinalizam sempre no sentido da redução do Estado, limitação do número de pessoal atuante, extinção de carreiras etc. Parece inequívoco que uma avaliação mais profunda quanto a essa opção estratégica deva figurar como premissa a ser constituída antes do debate quanto à modelagem de processos seletivos.
Abstraída a discussão quanto ao tamanho do Estado, tenho que um primeiro aspecto a ser considerado diz respeito à repetição da tendência já tanto presente no quadro normativo brasileiro de centralização da definição de molduras jurídicas na União. Na matéria em causa, é de se ter em conta que a repartição constitucional de competências confere à União funções mais distanciadas da dimensão executiva de serviços universalizados, como saúde e educação e mesmo segurança pública. Nestes termos, é previsível uma aproximação enviesada, que tenha como consideração predominante, a seleção de cargos vocacionados à supervisão e gerência, negligenciando as dificuldades que são próprias ao recrutamento de pessoal do chamado “nível de rua”.
Num plano ainda mais sofisticado, o discurso do direcionamento do concurso público para a exigência de demonstração de habilidades — e não de conteúdos tradicionais — desconhece que nem mesmo em um único cargo público se exigirá necessariamente o mesmo conjunto de habilidades. Considerando o universo com o qual tenho familiaridade, a saber, a advocacia de Estado; uma estrutura incumbida desse mister terá necessidade de advogados combativos, mas também de pareceristas, e mesmo de assessores jurídicos — cada qual deles, titulares de habilidades substantivamente distintas. Esta constatação parece sugerir que o discurso do redirecionamento do concurso para a aferição de habilidades talvez se revele equívoco, eis que parte delas exigem a atuação do profissional no ambiente próprio para que sejam identificadas como presentes.
Segundo aspecto que merece apontamento quanto a esta proposição de modelagem de concursos a partir de iniciativa da União, diz respeito ao previsível descolamento entre uma modelagem de seleção de pessoal, e as condições locais de oferta, seja de mão de obra, seja de profissionais atuantes no domínio do recrutamento. Disso pode resultar uma norma jurídica meramente retórica, que cogite de um modelo de concurso público insuscetível de realização dos profundos rincões deste país. O efeito deletério possível e indesejável, será a precarização do serviço, a preferência pela constituição de vínculos precários como contratações temporárias, ou ainda a terceirização.
Importante ainda assinalar que a priorização dos mecanismos de seleção de servidores públicos, negligencia o aspecto que hoje parece mais desafiador no plano da construção de um quadro de pessoal adequado, a saber, a fixação no serviço público, de pessoal apto e interessado no desenvolvimento das atividades que são próprias ao Estado lato sensu.
Não desconhece esta autora que o discurso recorrente é aquele segundo o qual o problema a ser enfrentado seja mais o desligamento de servidores, do que aquele da sua permanência. Também aqui a visão parece equívoca; o desafio é a garantia da oferta dos serviços públicos constitucionalmente assinalados, logo, a prioridade reflexiva não deve ser o esvaziamento dos quadros, mas sim a sua construção e consolidação.
Retomado o tema da fixação de servidores nos quadros da administração, é de se reconhecer que com as sucessivas reformas previdenciárias, as vantagens da respectiva proteção no modelo originário da Constituição de 1988 se descaracterizaram — donde este elemento de fixação se perdeu. Já no plano da remuneração em si, em que pese eventuais notícias bombásticas de servidores com patamares elevados de remuneração neste ou naquele segmento de governo; fato é que na sua maioria, não se tem no âmbito público uma política remuneratória que se apresente como o referido elemento de fixação dos bons profissionais nos quadros da administração pública.
A ausência de mecanismos indutores da desejável fixação de pessoal, como já referido, gera vários efeitos deletérios em relação à adequada prestação do serviço público. Alta rotatividade de quadros inviabiliza a formação de uma cultura institucional; bloqueia a construção de memória pela Administração, do que resulta um permanente estado de reaprendizado do antes já sabido. Investir na atratividade e fixação dos quadros de pessoal é, portanto, algo que deveria merecer prioridade — muito mais do que a pretendida Lei Nacional de Concursos.
Neste exercício, explorar as modificações havidas no mercado de trabalho em geral pode iluminar caminhos de solução. Um exemplo útil desse diálogo é a recepção de mecanismos de mobilidade na carreira — não aquela tradicional, da progressão em níveis, mas uma que considere a possibilidade da incorporação de novas habilidades adquiridas pelo servidor. Afinal, a lógica hoje vigente, com uma visão limitadora do princípio concursivo, condena o trabalhador ao desenvolvimento (em tese) de uma mesma e única atividade profissional por mais de três décadas. Na terceira década do século 21, essa imobilidade se apresenta como anacrônica, e um evidente fator de desincentivo à permanência nos quadros públicos.
O tema do regime jurídico de servidores tem figurado, há muito tempo, como o “patinho feio” do Direito Administrativo, seduzido pelos desafios da regulação e outras pautas mais modernas. Proposições surgem, sem a densificação de uma política pública orientada ao provimento de cargos públicos. A ação deixa de ser estratégica e planejada, e passa a flutuar ao sabor de provocações políticas de momento.
É preciso reconhecer que os compromissos valorativos desenhados pela Constituição não se concretizam sem serviços públicos ofertados por servidores. Pugnar pela efetividade da pauta de direitos sociais é postulação que não encontra solução possível sem o provimento de pessoal adequado à administração pública. É hora de o patinho feio virar cisne.
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