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Neste 11 de agosto de 2022, Dia do Advogado, a advocacia do Brasil deu mais uma prova de força na leitura da segunda Carta aos Brasileiros, ocorrida na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo.
O protagonismo dos advogados na vida brasileira continua intacto, como se vê, mas é inegável que a profissão mudou muito nos últimos anos. Por isso, a ConJur convidou alguns dos mais renomados causídicos do país para uma reflexão sobre os rumos da advocacia.
O advogado e professor da USP Pierpaollo Bottini defende que, apesar das inovações, a missão dos operadores do Direito continua basicamente a mesma. “O papel do advogado hoje e sempre é garantir a Justiça. A defesa. Garantir que o devido processo legal seja observado em todo ou qualquer julgamento pelo Judiciário ou pela Administração Pública. A forma e o procedimento são alterados através dos tempos, mas o papel do advogado segue sendo o mesmo”, opina ele.
O jurista e advogado Lenio Streck, por sua vez, acredita que o papel do advogado vem sendo, paradoxalmente, aumentado e diminuído. “Aumentado (ampliado) porque cada vez mais a vida é judicializada e diminuído porque a burocratização torna o papel refém de tecnologias e procedimentos impessoalizados”.
Streck explica que o aumento da importância de qualquer profissão ocorre por demanda. “Na pandemia, cresce o papel dos médicos; nos regimes autoritários, cresce o papel do advogado. Mas, paulatinamente, o papel do advogado, face à massificação, vai sendo desvalorizado. A Constituição de 1988 colocou o advogado como função essencial à Justiça; porém, talvez a Constituição tivesse de ter estabelecido um limite no numero de advogados; ou talvez, e aqui vai uma ironia, talvez a CF tivesse de ter estabelecido patamares mínimos de exigência nos concursos públicos, proibindo que se transformassem em quiz shows”.
O criminalista Aury Lopes Jr. tem um entendimento parecido. “O advogado assume, especialmente em momentos politicamente conturbados e com forte presença do verbo autoritário, uma posição crucial na defesa da democracia e dos direitos e garantias individuais. Ele dá voz e abrigo para quem sofre com o autoritarismo, com o abuso de poder, a discriminação e a injustiça”.
Outro célebre criminalista, Alberto Toron, afirma que, na essência, o papel da advocacia é o mesmo de sempre: defender os interesses do cliente dentro e fora dos tribunais. Mas, segundo ele, é evidente que o trabalho do advogado mudou muito. “O que chamamos hoje de compliance… A ideia de orientar o cliente sobre a conformidade de suas práticas com o ordenamento jurídico é algo que sempre fizemos. Hoje existe de uma outra maneira, e virou um verdadeiro ramo da advocacia. Hoje a advocacia se tornou muito mais ampla do que apenas a defesa da cidadania”.
Fernando Fernandes, por sua vez, afirma que o advogado continua sendo uma figura fundamental na efetivação da Constituição de 88. “A função do advogado é a mesma, mas há a intensificação da exigência da percepção de que a luta pela redemocratização durante o regime militar não terminou com a Constituição. Na verdade, a luta pela democracia é dinâmica e ela é mais intensa por dentro de um poder que não se democratizou plenamente, o Judiciário”, diz ele.
Gestor de uma das maiores bancas do país, Nelson Wilians acredita que muitos advogados continuam apenas na posição de apoiar pessoas, grupos e organizações em suas questões legais e promover o bem público. “Isso é necessário, porém, precisamos fazer mais. Pelo que percebo diariamente em meu escritório, além de um serviço técnico jurídico impecável, as grandes organizações querem ver as funções jurídicas transformadas em parcerias de negócio, mais proativas e estratégicas”, afirma Wilians, que sustenta que a dinâmica do mercado mudou e exige do advogado competência em novas tecnologias e novas habilidades.
Advogado como empresário
Ao responder se o advogado é um empresário como qualquer outro, Lenio Streck é lacônico: “De um certo modo, sim. Mas, por vezes, parece um motorista de Uber. Com essa massificação…”, lamenta. Já para Pierpaolo Bottini, a resposta é não. “Evidentemente que o advogado visa ao lucro, mas, além disso, deve atuar em busca da Justiça e da maior satisfação de seus clientes”.
Toron, por sua vez, acredita que a questão demanda um pouco mais de cuidado. “Temos ainda muitos advogados que atuam individualmente ou com mais alguns colegas, que fazem uma advocacia artesanal, mas nem por isso deixam de racionalizar o seu trabalho. Isso vem de uma cultura empresarial e por isso, em certo sentido, ele pode até ser considerado um pequeno empresário. Mas existe outra advocacia. Essa, sim, com feições empresárias, que é a dos grandes escritórios. É uma ilusão achar que a advocacia não vive uma certa mercantilização. Vivemos em uma sociedade capitalista e os organismos tendem a ter uma feição empresarial. Isso é mais que honesto e é bom que seja assim”.
Lopes Jr. entende que, apesar de o advogado ser um prestador de serviço, não pode ser encarado como um empresário qualquer. “Lidamos com a vida e a liberdade das pessoas, tendo do outro lado o poder estatal de perseguir e punir, que sempre tende ao abuso e facilmente comete injustiças. É uma relação muito mais complexa e sensível do que a de qualquer empresário”.
Já Wilians não crê que a advocacia seja uma atividade tipicamente mercantil. “Não há transgressão ética alguma quando o advogado adota uma postura empreendedora e se vale das melhores práticas empresariais de mercado”, defende ele.
Fernandes, por sua vez, diz que a advocacia é um múnus público exercido de forma privada. “Os honorários não podem ser encarados como uma forma de lucro comum, mas como retribuição ao papel de defesa das garantias emanadas da Carta Magna”.
A OAB e a vida política atual
“O advogado é um cidadão como qualquer outro. É natural que a sua entidade de classe tenha representantes de todas as matizes políticas. O que não é admissível é que um advogado, seja ele da área que for, defenda o fim da democracia, questione as eleições e defenda o fechamento do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso Nacional. Um advogado que defende tais ideias não honra sua beca. Não honra a sua profissão. Não compreende qual é o papel da Justiça e nem a importância de se garantir o Estado democrático de Direito”, diz Bottini.
Toron enxerga que o papel da OAB não é apoiar Bolsonaro ou Lula, mas defender a Constituição. “Esse é o papel do qual não se pode abdicar. Concordo quando o nosso presidente Beto Simonetti diz que a OAB deve ser apartidária. E tem mesmo. O que a Ordem não pode é se omitir de participar da defesa da democracia”.
Streck acredita que a OAB apenas reflete a sociedade brasileira. “Há advogados de todos os matizes ideológicos. Talvez uma grande parte seja mesmo alienada. Mas essa alienação é fruto do ensino jurídico que foi sendo facilitado. Chumbar hoje na faculdade de Direito necessita de pistolão”.
Aury Lopes Jr., mais incisivo, sustenta que é inacreditável que um advogado, comprometido com a Constituição, a intransigente defesa dos direitos fundamentais e a proteção do hipossuficiente frente ao poder estatal de punir, defenda um pensamento, para ele, autoritário, machista e retrógrado como o bolsonarista. “É uma espécie de ‘terraplanismo’ jurídico impensável a essa quadra da história. Está para muito além da ideologia política. A OAB, enquanto representação máxima do nosso lugar, precisa fazer essa luta intransigente pela democracia e o respeito aos direitos fundamentais de todos”.
Já Nelson Wilians diz que “a principal missão da OAB é nortear a classe advocatícia por meio de normas e condutas constitucionais e essencialmente relevantes, sem vieses ideológicos político-partidários”.
Fernando Fernandes, por sua vez, é mais duro:. “A OAB se perde ao repetir a vergonha histórica de ter apoiado o golpe de 64, o impeachment de Dilma sem crime de responsabilidade, e agora com uma omissão dolosa na defesa da democracia. O discurso vazio de que a OAB não é política é um discurso político em apoio aos ataques constantes ao STF e às instituições. O IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros), assim como em 64 com a posse de Sobral Pinto na presidência, completa a lacuna com uma rápida posição do presidente Sydney Sanches”.
A OAB e a Carta aos Brasileiros
Para Alberto Toron, a entidade deveria ter assinado o documento. Ele acredita que a OAB deveria não só ter seu próprio manifesto, como assinar a carta da Faculdade de Direito da USP e o texto da Fiesp, que são apartidários.
Streck segue a mesma linha. Ele acredita que a Ordem deveria ter seu manifesto, sim, mas poderia ter assinado também a Carta aos Brasileiros. Pensamento parecido com o de Aury Lopes Jr. “Não poderia deixar de subscrever a carta e todas as manifestações similares. Uma manifestação não exclui as outras e todas devem ser firmes e fortes na defesa do Estado democrático de Direito. Não há espaço, no atual cenário, para postura ‘neutra’, dúbia ou alheia ao grave momento que estamos vivendo. É preciso assumir o lugar de fala na defesa da democracia e lutar fortemente”.
Fernando Fernandes também é crítico: “A OAB só existe quando seus fins estabelecidos de defesa do Estado de Direito são mantidos de maneira intransigente pela democracia”.
Já Nelson Wilians acredita que cabe à advocacia — em especial em momentos de grave instabilidade política, jurídica e social, como o atual — a defesa intransigível do Estado democrático de Direito. “Acredito que o objetivo da Ordem ao não subscrever a carta da USP foi o de passar a imagem de independente politicamente. Em tempo, já passa da hora de a própria OAB adotar eleições diretas em todas as suas esferas”, lamenta ele.
O que vale mais: ideologia ou interesse do cliente?
“Eu tenho a impressão de que o interesse do cliente vale mais do que a nossa ideologia. Lembro sempre de um episódio do segundo reinado em que um monarquista assassinou um líder do movimento republicano. Esse homicida procura o saudoso Evaristo de Morais para defendê-lo. E ele escreveu para o Rui Barbosa perguntando se ele — que era entusiasta do movimento republicano — deveria defender aquele monarquista. E Rui Barbosa respondeu. Essa resposta — que se tornou um livro chamado “O dever do advogado” — foi sim, ele deveria defender aquele monarquista. Porque, por mais atroz que seja o crime praticado, ninguém decai do abrigo da legalidade”.
Bottini não acredita que exista uma divisão entre o que o advogado acredita e o interesse do cliente. “O advogado sempre será parcial em favor do seu cliente. Enquanto cidadão, o advogado tem uma ideologia própria, e enquanto representante do seu cliente deve representar dentro da legalidade os seus interesses”.
Fernandes diz que “o que vale é o interesse público da defesa das garantias individuais frente a qualquer ameaça. Não existe contraponto entre interesse privado de cliente e público do Estado quando a questão é a aplicação da Constituição”.
Streck resume a questão com um exemplo cinematográfico. “Interesse do cliente. Pense no dr. Sandoval, advogado do espião russo do filme ‘A Ponte dos Espiões’. Meu tipo ideal de advogado”.
Nelson Wilians também sustenta que o advogado é um representante do cliente. “Por princípios éticos, ele não deve deixar a ideologia interferir nessa relação”.
O futuro da advocacia
Sobre o futuro da profissão, Nelson Wilians é otimista. “Vejo um futuro promissor, porém cabe ao advogado se adaptar aos novos tempos. Neste momento, há de fato todo um conjunto de forças moldando as funções jurídicas de amanhã, quando conviveremos com plataformas que nos permitirão avaliar e gerenciar contratos cada vez mais com precisão e detalhes, em tempo real. Isso é empolgante e, ao mesmo tempo, desafiador, já que exigirá uma mudança de cultura no modelo de serviço jurídico”.
Em contraponto, Streck é pessimista. “No ritmo que vai, a uberização da profissão pode levar ao colapso. Mas veja bem: quando se fala do futuro da advocacia, a pergunta deve embutir a formação do bacharel em Direito. É ali que está o busilis da questão”.
Fernando Fernandes, entretanto, sustenta que “o futuro está na criatividade e na constante reconstrução que não deixe a raiz histórica fundamental formadora na profissão. Desde as lições de Rui Barbosa, mas que compreenda as novas formas para impedir que tecnologias sejam usadas não para a prestação jurisdicional, mas para a negação dos direitos fundamentais”.
Bottini enxerga a advocacia do futuro como mais tecnológica, mas com o mesmo ideal. “Sempre buscando a defesa do devido processo legal e o auxílio da realização da Justiça”.
E Toron afirma que é claro que a profissão vai mudar. “De um lado, teremos grandes firmas de advocacia, de outro lado, um atendimento forte do Estado para pessoas carentes e a advocacia, que sempre vai existir. Uma artesanal que irá atender pessoas com maior ou menor poder aquisitivo. A principal mudança será o instrumental tecnológico. A utilização da inteligência artificial e das audiências por videoconferência. Isso vai dar um tom diferente ao exercício da advocacia. Espero que não percamos nisso a possibilidade de um exercício integrado com os magistrados e do Ministério Público da defesa em sua plenitude”.
Fonte: Conjur
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